A
IMAGINAÇÃO CRISTÃ – Leland Ryken e outros.
Como foi
indicado na postagem anterior (leia aqui), procurarei resumir aqui alguns dos pontos principais e
apresentar citações extraídas da obra A Imaginação Cristã, a qual é uma pérola da epistemologia
da arte e da literatura pela visão cristã.
UMA
FILOSOFIA CRISTÃ DA LITERATURA
A
“estética” é a filosofia da arte. A “poética” é a filosofia da literatura,
especificamente. Essa unidade deste livro cobrirá as duas. Relacionados abaixo estão os temas
principais que serão abordados nesta sessão:
- Qual é o
assunto da arte e da literatura?
- Qual é a
relação entre arte e vida?
- Qual o
propósito, a função e os efeitos da arte e da literatura?
- Como a arte e a literatura podem ser
defendidas?
Nesta
unidade da obra, estão compreendidos os seguintes artigos: A Poética Cristã, Passado e
Presente (Donald T. Williams); Pensando de modo Cristão sobre a Literatura
(Leland Ryken); Perspectivas da Arte (Francis Schaeffer); Literatura como um
Objeto Artístico (Annie Dillard); Nós Demandamos Janelas (C. S Lewis); A Arte Cristã (Jacques Maritain); Reflexões para um Entendimento da Literatura. Estes
últimos quatro são pequenos textos denominados de “Pontos de Vista” na obra,
alguns dos quais já foram traduzidos e postados neste blog.
A POÉTICA
CRISTÃ, PASSADO E PRESENTE – Donald T. Williams
Segundo o
autor, “a história da poética cristã – isto é, de cristãos pensando
conscientemente como cristãos sobre a natureza e a importância da arte
literária – é um conto de um movimento lutando, quase que apesar de si próprio,
para conseguir chegar a captar a sua própria doutrina de que os seres humanos
são criados conforme a imagem de Deus.” (Williams, p. 3) No ocidente, como a fé
e a cultura cresceram e se desenvolveram juntas, este processo tem, às vezes,
tornado-as quase que indistinguíveis. “O que Atenas tem a ver com Jerusalém?”
Perguntou Tertuliano, e as respostas a esta questão, embora muitas, nunca têm
sido simples ou fáceis.
Especificamente,
percebe-se que os cristãos têm lutado para aplicar à literatura o princípio
geral do Novo Testamento sobre o estar no mundo, mas não ser do mundo (João 17:
11-16). “Eles estavam sempre corretamente suspeitosos de uma cultura baseada na
idolatria – e portanto, da literatura em geral. Mas eles não podiam escapar das
fundações literárias da sua própria origem, ou do fato de que eles e toda a
humanidade foram criados segundo a imagem daquele que expressou a sua mais
profunda natureza, desde o início, como o Verbo”, sugere o autor. Esta tensão
dá origem às aparentes contradições nas coletivas respostas dos cristãos ao
longo dos séculos: a condenação da literatura por alguns como perigosa e, na
melhor das hipóteses, uma perda de tempo, ao mesmo tempo em que outros se deram
à produção dos maiores poemas que o mundo já viu. E neste processo, alguns
poucos destes cristãos têm encontrado na doutrina da Imago Dei, a única explicação coerente para o fato de que a raça
humana é, para o melhor ou para o pior, “uma tribo de criadores incorrigíveis”
(P. 4).
AS ORÍGENS:
AGOSTINHO
São
Agostinho, o mais profundo e articulado dos porta-vozes antigos, é, em seus
próprios escritos, um “microcosmos” das discussões contínuas e abrangentes
desses autores. Por esta razão, nos é requerida uma atenção mais extensa a ele.
O seu lado negativo é o mais conhecido. No Livro I das suas Confissões,
Agostinho parece olhar para trás nos seus estudos de Virgílio com
arrependimento pelo tempo perdido... “O seu labor neles havia sido, na
realidade, nada mais do que um sacrifício oferecido aos anjos caídos”. Ele
havia chorado por Dido, personagem mitológica que se suicidou por amor, ao
mesmo tempo em que permanecia de olhos secos para a sua própria morte
espiritual. Agora, após a sua conversão, ele pensa em seu prazer no seu
sofrimento ficcional como loucura (dementia). Segundo ele, a experiência
literária não leva à virtude porque a verdadeira misericórdia é prática. “A
catarse emocional do teatro, portanto, não passa de um fingimento ou blefe,
porque por ela ninguém é ‘provocado a ajudar o sofredor, mas apenas convidado a
se sentir triste por ele’” (idem).
Estas
mesmas e familiares queixas seriam repetidas ainda muitas vezes ao longo da
história. “As ficções dos poetas são mentiras; elas são uma perda de tempo, nos
distraindo de buscas mais produtivas; e elas são uma sedução ao mal.” No
entanto, quando lemos estas passagens, nós não podemos acreditar que, mesmo
sendo escritas por Agostinho, elas nos contam a história toda. “De onde, nós
perguntamos, teria vindo o apropriado estilo das ‘Confissões’ se ele nunca
tivesse estudado os clássicos do ponto de vista da análise retórica? E onde ele
teria achado exemplo tão concreto para o seu ponto sobre as dores de Dido?”
(Williams, p. 4)
A educação
que Agostinho recebeu havia sido retórica e sofista; ele foi treinado, em
outras palavras, para ser um advogado, um profissional cuja prática era fazer o
pior parecer o melhor argumento e ensinar outros a fazerem o mesmo. “Ele havia
sido ensinado a sondar os clássicos por exemplos de eloquência que pudessem ser
usados cinicamente para ganhar casos na corte sem preocupação nenhuma para com
a verdade. E nesta eloquência a sua ‘ambição era ser eminente, tudo por um
terrível e vanglorioso fim cheio de prazer na glória humana’. Não é de se
estranhar, portanto, que na sua reação pós- conversão, ele se sentiu compelido
a jogar fora o bebê da literatura juntamente com a água de banho da sofística.
No entanto, os próprios termos dessa rejeição testificam para o poder de
palavras bem utilizadas.” (P. 5)
Mesmo sem
ter consciência disso, Agostinho havia sido impactado pelos autores clássicos
que ele havia lido, de modo que eles lançaram as bases morais que seriam
utilizadas por Deus, mais tarde, para a sua conversão. “A Obra Hortensius, do
pagão Cícero, teve uma grande influência que levou à sua conversão a Cristo.
Ela ‘alterou, em grande medida as minhas afeições, direcionou às minhas orações
a Ti, Ó Senhor, e fez com que eu me lavasse de outros propósitos e desejos.”
(idem)
Assim, o mesmo
Agostinho, ao tratar, depois, sobre educação cristã, também expõe o assunto da
seguinte forma:
Nós [cristãos], não devemos
abandonar a música, por causa das superstições dos pagãos, se há alguma coisa
nela que possa ajudar-nos a entender as Escrituras Sagradas... Nem há razão
alguma para que nos recusemos a estudar a literatura porque dizem que Mercúrio
a descobriu. O fato de que os pagãos têm dedicado templos à Justiça e à Virtude,
e preferem adorar na forma de coisas de pedra aquilo que deve ser carregado no
coração não é uma razão para que abandonemos a justiça e a virtude. Pelo
contrário, é preciso que todo bom e verdadeiro cristão entenda que a verdade
pertence ao seu Mestre, não importa onde ela seja encontrada. (Howie, p.
350-351)
Mesmo nas
suas confissões, Agostinho admite que aprender a ler é muito bom e que a
eloquência deve também ser entendida como algo que não é inerentemente mal: “Eu
não culpo as palavras que, em si próprias, são como jarras finas e preciosas,
mas o vinho do erro que está contido nelas.” (Agostinho, p. 149)
Assim, os
cristãos podem fazer uso do estudo de autores pagãos (assim como fazem uso das
suas produções medicinais e das suas descobertas científicas e culturais, desde
que sirvam ao bem da comunidade em geral), aprendendo a utilizar palavras bem
escolhidas para o bem, e até mesmo transformando tais autores, desse modo, em servos
da verdade.
Portanto,
segundo Agostinho, “nós não devemos culpar a prática da eloquência, mas a
perversidade daqueles que fazem mal uso dela.” (Howie, p. 360) Visto que ela é
“empregada para apoiar tanto a verdade, quanto a falsidade, quem ousaria dizer
que a verdade, como representada pelos seus defensores, deveria ir para o campo
de batalha desarmada?” O resultado dos cristãos abandonarem o campo de batalha
é que a falsidade é exposta de modo “breve, claro e plausível”, mas a verdade
“de um modo tedioso... difícil de entender e, em suma, difícil de acreditar”. (idem,
p. 369)
Segundo
Williams (p. 7), Agostinho articulou uma defesa para a apropriação e produção
literária por parte dos Cristãos que, embora seja produto de uma abordagem um
tanto limitada e pragmática, não deixa de ser um bom começo para o entendimento
cristão sobre a literatura, visto que lança sementes e esboça princípios que
seriam, mais tarde, desenvolvidos e ampliados por outros críticos cristãos,
como os seguintes: “o valor da literatura está na verdade que ela transmite, e
no modo como ela pode nos ajudar a entender as Escrituras e a proclamar o
evangelho.” E “a arte torna a verdade plausível e a sua ausência torna-a
difícil de acreditar”. Não podemos pressionar Agostinho, de forma anacrônica,
em uma direção que só seria traçada com mais clareza em outros momentos da
história da crítica literária pela perspectiva cristã.
Na próxima postagem, serão abordados os períodos medieval e da renascença. Aguardem!
Trechos extraídos da obra: A Imaginação Cristã. Leland Ryken (editor). Shaw
Brooks, 2002.
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