5.1 Formas de Abordar a Relação Religião-Filosofia-Educação
Ao se buscar uma abordagem filosófica da vida e da educação, é possível perceber concepções diversas a respeito do mundo, do homem, do conhecimento, de Deus e de sua relação (ou não) com o mundo, da razão de ser das coisas, sua origem e finalidade, concepções estas que encerram também pressupostos religiosos. Em meio a toda essa diversidade de pensamentos e pressupostos teológicos, antropológicos, científicos e filosóficos, torna-se imprescindível considerarmos quais as bases em que podemos estabelecer uma filosofia da educação cristã.
Estudar sobre a Filosofia da Educação Reformada envolve três temas centrais que precisam ser considerados em sua relação entre si: a filosofia, a educação e a religião.
Uma filosofia é um sistema que permite a leitura do mundo de uma dada perspectiva. James W. Beeke[2] ([2003?], p. 38) adotou uma definição ampla para a palavra “filosofia”, como sendo “as crenças, conceitos e atitudes de um indivíduo ou grupo; um sistema de conceitos filosóficos; uma busca pela verdade através do raciocínio lógico”. E as filosofias, entendidas também como “crenças”, desenvolvem-se em torno de pressupostos religiosos, afirmando-os ou negando-os, daí a divisão que faremos entre filosofia secular, entendida como a filosofia que se desenvolveu à parte do pensamento bíblico-reformado, e a filosofia reformada, firmada nos preceitos bíblicos e na cosmovisão protestante, especialmente calvinista.
O pensador reformado, seja qual for a sua área de estudo, irá sempre se deparar com o pensamento e filosofia secular e deverá tomar uma atitude para com essas formas de pensamento. É assim que o cientista cristão terá sua crença bíblica na criação (criacionismo) desafiada pelo evolucionismo darwinista, de base não-cristã, e precisará tomar uma posição com relação a essa questão. Há os que negam a validade da ciência, e os que negam a religião. Há os que tentam unir ciência e religião, propondo o que chamam de “evolucionismo cristão”. E há outros que consideram incompatíveis e inconciliáveis as posições religiosa e científica, e as consideram como dois âmbitos distintos, cada um com a sua verdade válida para si. Finalmente, existe ainda uma terceira forma de abordar a questão entre as descobertas científicas e os ensinamentos bíblicos, em que o cientista cristão adotaria uma atitude humilde ao reconhecer a falibilidade da ciência e dos intérpretes das Escrituras, estando pronto para aceitar as descobertas científicas desde que estas estejam de acordo com a sua cosmovisão bíblica.
A partir deste exemplo tirado da ciência, é possível perceber a diversidade de abordagens conflitantes que acometem o pensador reformado e demandam dele uma tomada de posição firme com relação ao pensamento produzido pelos não-cristãos, e mesmo com relação a posicionamentos diferentes entre os cristãos. As mesmas considerações aplicam-se ao âmbito da educação. Não é possível estabelecer uma filosofia de educação, sem que antes se analisem quais as suas bases de sustentação e de orientação. Porque ela exige um determinado tipo de competências para professor e não outro tipo? Porque considera certos conteúdos importantes para o currículo em detrimento de outros? Por que estabelece este e não aquele fim para a educação?
A formulação de uma filosofia da educação reformada necessariamente exclui as formas de pensamento que desconsideram a existência de Deus e de um mundo espiritual, aquelas teorias filosóficas ou educacionais ditas ateístas, que negam qualquer tipo de intervenção divina no mundo ou na vida individual das pessoas. Ainda que educadores cristãos impensadamente adotem práticas e filosofias anti-cristãs na educação que praticam, sem a mínima consideração sobre o conflito que está sendo abafado, essa orientação educacional não pode ser considerada uma educação reformada.
Há, entretanto, outras formas de abordar a relação filosofia-religião-educação, elaboradas no decorrer da história, que tentaram formular visões de mundo que, embora levassem em conta a pessoa e a intervenção de Deus nos negócios humanos, dentre os quais a educação, e embora sejam geralmente aceitas como posições cristãs, não constituem a visão de mundo reformada. Serão considerados a seguir dois desses sistemas de pensamento, na tentativa de demonstrar que a educação reformada não pode se desenvolver tendo-os como base.
5.1.1 A Síntese Tomista
A primeira dessas abordagens é a que ficou conhecida como a mentalidade da síntese. É a posição que busca sintetizar o pensamento cristão ao não-cristão. Esse sistema de pensamento não é novo (embora seja ainda bastante popular entre os cristãos), mas remonta ao escolasticismo medieval de Tomás de Aquino.
A síntese tomista consistia numa tentativa de desenvolver uma visão teórica unificada da realidade, uma visão cristã das coisas, ou seja, uma tentativa de ver o mundo de acordo com os dogmas cristãos, o que se conseguiria através de uma acomodação geral com o pensamento não-cristão (a filosofia e as ciências à parte de Deus).
Tomás de Aquino reinterpretou o pensamento aristotélico adequando-o às doutrinas cristãs, mas mantendo os principais conceitos aristotélicos e platônicos como a base de todo seu pensamento. Ao analisar o caráter sintético do pensamento tomista, S. Fowler explica a essência do escolasticismo de maneira bem prática:
Em resumo, Tomás disse: Tomaremos este mais nobre produto de todo pensamento humano, purificá-lo-emos dos elementos ofensivos ao dogma cristão, o usaremos numa versão purificada como o fundamento, a base para um sistema universalmente válido de pensamento, e o coroaremos com a doutrina cristã como seu fim apropriado e glória (1982, p. 2)
Para compor esse sistema, Aquino propôs um dualismo graça-natureza, onde destaca a esfera da natureza, dentro da qual todos os homens podem chegar ao conhecimento da verdade pela “luz da razão”. Nesse tipo de conhecimento, crentes e incrédulos estão em um mesmo nível, pois, segundo ele, a luz da razão não foi obscurecida/turvada pelo pecado, sendo possível ter mesmo um conhecimento verdadeiro e acurado de Deus utilizando-se apenas da luz da razão natural. (FOWLER, 1982, p. 2-3).
De outro lado, para manter seu apoio à fé cristã, Tomás postulou um “reino da graça”, além do alcance da razão natural. Através da Igreja, da fé, da Bíblia, das doutrinas e da teologia, o cristão poderia ter contato e conhecimento dessas verdades superiores, inalcançáveis pela luz da razão natural.
Essas duas esferas, embora independentes, foram colocadas juntas e unificadas; a natural como infraestrutura e a da graça como superestrutura que coroava a esfera natural, de maneira que “a natureza, à parte da graça, é imperfeita, deficiente, e, à parte da natureza, a graça vagueará no ar sem sentido e sem fundamento” (FOWLER, 1982, p. 3).
Que conseqüências a síntese escolástica trouxe para o pensamento filosófico e religioso de um modo geral e por que esse tipo de relação entre a Igreja e o mundo, entre as doutrinas cristãs e a ciência, filosofia e pensamento do mundo não-cristão, foi rejeitado, à luz da interpretação reformada das Escrituras, como deturpação do cristianismo bíblico?
Segundo Fowler, há diversos pontos para serem considerados. Em primeiro lugar, esse dualismo coloca uma grande parte do pensamento humano (filosófico e científico) fora da autoridade direta das Escrituras, visto que essa área é considerada religiosamente neutra, pelo que a razão aqui é suprema e suficiente.
Em sua síntese, Tomás de Aquino não só acomodou os conceitos aristotélicos à fé cristã, como também acomodou as doutrinas cristãs aos conceitos aristotélicos. Dessa forma, sua síntese reservava um lugar para deus, mas o Deus vivo da revelação bíblica ficava escondido atrás da Forma pura, a Causa não causada dos filósofos gregos (FOWLER, 1982, p. 3). Distorções semelhantes ocorreram com as doutrinas da criação, da concepção de corpo e alma, só para citar alguns exemplos.
A influência tomasiana imprimiu uma direção racionalista ao pensamento cristão, posto que a primazia foi dada ao intelecto, gerando uma intelectualização da fé cristã. A razão é a autoridade final no campo natural. No domínio da graça, ela cede sua suprema autoridade para a fé, mas continua exercendo um papel crucial de conformar as doutrinas cristãs à lógica e ordem da razão.
A teoria educacional gerada por este pensamento escolástico era baseada no motivo da “matéria-forma” da filosofia grega; “assim como a substância [matéria] é potencial na essência, assim também o conhecimento é potencial no homem” (FOWLER, 1982, p. 4). Tomás de Aquino defende que a criança possui internamente o conhecimento inato dos conceitos universais. A sabedoria e as virtudes pré-existem no aprendiz potencialmente, sendo ensinadas interiormente e somente por Deus, enquanto o papel do professor é o de mero catalisador que faz o conhecimento inerente ao aluno nascer ou exteriorizar-se. O perigo desta posição é que ela pode de gerar um perigoso determinismo.
Em seu posicionamento contra a síntese escolástica, os reformadores insistiram em que somente a Escritura deveria dirigir a vida humana e guiar o homem em sua busca pelo conhecimento, sob o lema: “Sola Scriptura”. Tal rompimento com a síntese escolástica ocorreu de fato no âmbito doutrinário e eclesiástico, e deveria ser desenvolvido como perspectiva norteadora de outras áreas da vida humana, dentre as quais a educação. Entretanto, os seguidores dos primeiros reformadores falharam em aplicar o princípio do Sola Scriptura a outras áreas da vida, como na Educação, de modo que essa síntese teve grande repercussão e permanece hoje tanto nos meios evangélicos, como católicos e seculares.
A essência do pensamento sintético pode ser percebida na tendência racionalista e intelectualista do pensamento atual. Por exemplo, quando se busca reduzir a verdade a proposições intelectuais e se enfatiza, sobre todas as coisas, o papel da razão para a defesa da fé, e a razão é considerada necessária tanto para a recepção da revelação quanto para julgar a credibilidade da revelação como também para julgar a evidência de uma revelação. À razão humana caída é dado julgar, avaliar e estabelecer o que é e o que não é verdade na Palavra de Deus, de maneira que o intelecto é posto como medida de todas as coisas.
Tendência igualmente adotada hoje é a de se confundir a fé bíblica com os conceitos da filosofia grega, por exemplo na tendência de se degradar o material ao mesmo tempo em que sensualmente o aproveita e na santificação do espiritual; na crença no poder do exemplo para promover a virtude moral e na relativização da verdade ao intelectualizá-la.
E, num olhar mais atual, constata-se a permanência do método sintético como resposta ao pensamento do mundo não-cristão. Apenas a filosofia grega foi substituída pelo atual pensamento humanista, que tem sido grandemente absorvido pela Igreja e por pensadores cristãos. Igualmente comum para os cristãos de hoje é ver a ciência como atividade religiosamente neutra e admitir o conhecimento independente da fé e prioritário à fé, sendo apenas limitado pelos dogmas, fatos e ética bíblicos mais claramente expressos e aceitos como inquestionáveis.
Em vista do que foi dito sobre a abordagem sintética, listamos brevemente algumas razões porque não se pode estabelecer uma filosofia da educação reformada sob estas bases:
· Por que esse método nega o preceito fundamental reformado do Sola Scriptura.
· Por que, dentro desse sistema, o “temor do Senhor” deixa de ser o princípio da sabedoria para ser seu corolário;
· Porque contraria a doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes, posto que as demais áreas da vida seriam religiosamente neutras.
· Porque a educação cristã não é um simples acrescentar de conceitos cristãos às teorias educacionais existentes, tampouco um balizar do pensamento não-cristão pelos dogmas inegociáveis da Igreja, mantendo-se uma mentalidade totalmente secularizada, camuflada com chavões bíblicos.
Fowler estabelece esse ponto muito claramente:
Pode ser tentador construir uma educação “cristã” a partir do modelo da síntese. Fazer isso nos livra da temida tarefa de desenvolver, partindo do nada e por completo, uma teoria educacional cristã. Poderíamos apenas escolher e selecionar dentre as teorias “neutras” forjadas por educadores não-cristãos aquelas idéias que parecem não envolver conflitos com nossas doutrinas cristãs, acrescentar uma dose liberal de doutrina cristã, textos bíblicos e moralidade e formular uma educação cristã instantânea.
Entretanto, parece estar claro que nunca poderemos ter uma verdadeira educação cristã dessa maneira. Podemos ter escolas que se chamem cristãs, podemos prover para elas um corpo de funcionários que sejam crentes dedicados, podermos acrescentar a Bíblia ao currículo, falar de Jesus e citar a Bíblia em cada aula; podemos estabelecer altos valores morais, mas ainda nem estaremos perto de conseguirmos uma educação cristã integral.
Na melhor das hipóteses teremos uma educação secular, do mesmo tipo da educação secular oferecida em qualquer escola secular, adicionada de um sabor cristão, um fator que acrescenta, mas que não afeta radicalmente a educação oferecida”. (1982, p. 14-15)
5.1.2 A Co-existência Pacífica
Voltando para o exemplo das contradições entre a ciência e a religião no caso do evolucionismo versus criacionismo, verifica-se que a resposta do cientista cristão dominado pelo esquema sintético seria a de unir as instâncias científica e religiosa, como é o caso dos que acabaram formulando uma espécie de “evolucionismo cristão”, utilizando os conceitos científicos, mas dando a eles um novo sentido que não contraria a mensagem bíblica, e ao mesmo tempo interpretando a versão bíblica à luz das proposições científicas. Mas há outra resposta possível, talvez ainda mais comum. Trata-se da tendência de se evitar o conflito numa busca de preservar a fé cristã dos ataques da ciência e vice-versa, por meio da afirmação de que essas duas instâncias, fé e religião, não podem ser misturadas nem interferirem uma na outra, por se tratarem de áreas distintas, embora complementares, significando que elas podem co-existir pacificamente.
As raízes desse tipo de abordagem encontram-se no chamado nominalismo de Ockham, com ênfase no individualismo, no empirismo, que valoriza a experiência dos sentidos e nega o conhecimento inato e os “conceitos universais” típicos do escolasticismo. Para os empiristas, crer não depende de conhecer, e eles rejeitam a primazia do intelecto pela primazia da vontade.
Este empirismo gera uma aguda distinção entre fé e conhecimento, entre o ato de crer e o ato de conhecer. O ato de conhecer é empírico, natural, fundado na percepção sensorial. O ato de crer não depende de maneira nenhuma do conhecer, visto que é, em sua própria natureza, não-empírico, não-sensorial, fundado na revelação sobrenatural de Deus. (FOWLER, 1982, p. 17)
Neste sistema, permaneciam os dois reinos, natural e sobrenatural, do conhecimento e da fé, da natureza e da graça, mas eles foram colocados como completamente independentes um do outro, e a possibilidade de uma síntese foi completamente excluída. O resultado do nominalismo para os cristãos foi que eles tentaram preservar a autoridade da fé sem questionar a validade do pensamento não-cristão na área do intelecto. (FOWLER, 1982, p. 19).
Nas mãos dos não-cristãos, o nominalismo resultou na abertura do caminho para o triunfo do secularismo e acabou sendo usado como arma contra a fé cristã, porque “pavimentou o caminho para a proclamação triunfante da ciência como o único caminho para o conhecimento” (FOWLER, 1982, p. 20) e com a ciência predominando e dominando a explicação de todos os fenômenos, a fé foi sendo descartada como irrelevante.
Atualmente, a co-existência pacífica pode ser vista sempre que fé e ciência são entendidas como instâncias separadas e complementares. A posição descrita a seguir é deveras comum de ser ouvida:
O cristão, quando ele pensa como cientista, deve deixar de fora sua fé. Ele não vai deixar de crer, como pessoa, mas ele vai impedir sua crença de influir em sua atividade como um cientista.
A ciência, operando numa base estritamente empírica, sem intromissão da fé, fornece o verdadeiro conhecimento do universo.
Ainda assim, a ciência não diz tudo que pode ser dito sobre o universo. Há outra dimensão, que não depende nem sobrepõe-se à dimensão da ciência. É a dimensão da fé.” (FOWLER, 1982, p. 20-21)
A ciência fornece a visão objetiva da realidade e a fé dá a visão subjetiva da realidade, e por isso elas são complementares e podem co-existir de modo pacífico.
A consequência dessa abordagem do mundo é que a Palavra de Deus é retirada da vida prática. Ela não tem nada a dizer, não interage com as demais áreas da vida humana. A Religião e a vida natural permanecendo como dois reinos independentes, a Bíblia é feita irrelevante para a vida humana prática, assim como nas questões científicas ou educacionais.
Por isso é que eles afirmam que não há uma teoria da educação cristã, apenas adaptações. Nessa concepção dualista, a educação cristã passa a ser vista apenas como sinônimo de educação secular com o acréscimo dos valores morais, que é a única área em que a Bíblia pode complementar a educação. Contudo, nem isto pode ser considerado uma contribuição distintamente cristã. O reconhecimento da importância e da necessidade de se inserir valores morais na educação é algo natural, óbvio para quase qualquer educador secular. A Palavra de Deus não influencia de fato o ensino.
Mais uma vez, uma filosofia da educação distintamente reformada encontra dificuldades em se estabelecer sobre esta base dualista, visto que, nela, a área educacional é colocada fora da influência da Palavra de Deus. A co-existência não pode ser a base filosófica da educação cristã.
Qual é, então, a base adequada para uma verdadeira filosofia da educação cristã? É a base das pressuposições religiosas reformadas, a que FOWLER chama de “o caminho da antítese religiosa”, que descreveremos a seguir.
5.2 Fundamentos da Educação Reformada
Este caminho não é inteiramente novo. Já foi traçado, em suas linhas gerais, pelos reformadores do século XVI e esboçado, em termos de princípios, nas confissões de fé reformadas. Estes princípios decorrentes de doutrinas bíblicas formam uma visão de mundo unificada e consistente, ou uma “cosmovisão”, em que se encaixam todos os fenômenos da vida prática e da religião, que encontram uma explicação no que se refere à origem, meios e fim de todas as coisas, inclusive da educação.
A Filosofia da Educação Reformada fundamenta-se em pressupostos bíblico-reformados definidores de uma visão de mundo reformada. Essas proposições são resumidas por FOWLER (198, p. 13-14) nos seguintes pontos:
· A religião verdadeira é o fundamento e a chave para entender o cosmos. Ela é a base para o entendimento da origem de todas as coisas, e de seu propósito; e “todas as coisas” inclui cada aspecto da vida humana, sendo a educação um aspecto importantíssimo.
· O homem é um ser distinto dos demais não apenas por seu caráter racional, mas principalmente, pelo seu caráter essencialmente religioso.
· Deus, o Deus único e trino da Bíblia, se revela na natureza e todo homem tem uma atitude para com essa revelação.
· A neutralidade religiosa é impossível. Por isso que a filosofia da educação reformada rejeita a admissão de conceitos educacionais seculares, pois entende que não são, de forma alguma, neutros, mas estão imbuídos de princípios religiosos anti-cristãos, e estes princípios influenciam inúmeros aspectos teóricos e práticos da educação secular proposta.
· Os reformados crêem que “O temor do Senhor é o princípio do saber” (Provérbios 1:7). À parte de Deus, o pensamento humano leva à morte intelectual, moral, social, e de todos os aspectos da vida humana.
· A proposta reformada leva em conta o pecado e seus efeitos.
· O compromisso religioso do homem é prévio a qualquer atividade sua. O homem tem apenas duas escolhas: ou ele segue o Deus da Bíblia e a Sua Palavra e anda pelo caminho da vida e da sabedoria, ou ele dá as costas a esse Deus e se encontra no caminho do pecado e da morte. Essa escolha essencialmente religiosa determina cada uma das decisões e atividades humanas.
· É, portanto, impossível, vão e desastroso tentar harmonizar a fé cristã a qualquer outro sistema de pensamento, posto que:
Qualquer atividade, qualquer pensamento, que não está sujeito à palavra de Deus está necessariamente sujeito a um ídolo, a deificação de um aspecto da criação. Isso exclui toda possibilidade de síntese ou de co-existência pacífica. Todo sistema de pensamento que é construído de uma posição que professa a neutralidade religiosa, seja ele filosófico, científico, político ou educacional, está enraizado em um princípio idólatra que é a antítese da fé cristã. (Fowler, 1982, p. 26)
É importante destacar que, na formulação de uma filosofia de educação reformada, não é possível aproveitar os fundamentos e os conceitos das teorias educacionais seculares vigentes, elaborando uma espécie de síntese, ou adotando-as como válidas porque são estritamente educacionais, propondo uma co-existência pacífica. Isso porque, embora elas se digam neutras, elas não o são. À medida que elas negam ou desconsideram a presença de Deus no mundo e sua Revelação, elas estão necessariamente partindo de princípios religiosos anti-bíblicos, de que Deus não existe, ou de que, se existe, Ele não tem nada a dizer sobre os assuntos humanos como a educação.
Segundo a Bíblia, esse é um princípio idólatra, pois dada a natureza essencialmente religiosa do homem, este está necessariamente em uma relação religiosa com o mundo. Se não é ao Deus bíblico que ele adora, ele está adorando a criatura, quer seja a si mesmo, a sua razão, a sua vontade, quer seja qualquer outro aspecto da natureza.
Assim, conclui Fowler:
Visto que a direção de todas essas opções é antitética à nossa fé cristã, qualquer um desses métodos nos trará uma teoria que é, em seus fundamentos, antitética à nossa fé, ainda que sejamos bem-sucedidos em aplica-la uma lustrosa camada de verniz.
Uma teoria educacional cristã deve ser fundada em uma filosofia que pensa profundamente todos os pontos teóricos, desde suas bases, à luz da palavra de Deus. O pensamento cristão sobre educação deve ser um pensamento que, consciente da antítese religiosa, e consciente de que, para o crente também, essa antítese é um fator a ser considerado tanto interno como externo a nós, está conscientemente lutando para ser guiado pela Palavra de Deus durante todo o caminho. Devemos construir desde o princípio em fundamentos bíblicos. (1982, p. 27).
Não obstante, muitos educadores cristãos e protestantes se apropriam de conceitos e princípios teóricos anti-bíblicos, ou porque não conseguem perceber que são contrários à Palavra de Deus, ou porque não estão preocupados em serem bíblicos em tudo o que fazem, ou ainda porque, mesmo percebendo a incongruência dessas teorias com a sua fé, não estão habilitados a pensar profundamente sobre a questão, a ponto de estabelecer práticas e teorias distintamente reformadas.
Contra a perpetuação dessas educação anti-bíblica, de cunho humanista, racionalista e relativista, é que se evidencia a necessidade de uma filosofia distintamente reformada sobre a Educação. Uma filosofia da Educação Reformada tem como tarefa principal fazer uma avaliação crítica das teorias e práticas educacionais que estão sendo propagadas na educação secular, à luz dos princípios bíblicos, e desenvolver, a partir dessa reavaliação e de pressupostos reformados, novas teorias de conhecimento, novos objetivos educacionais, novas práticas metodológicas, uma nova organização escolar, uma nova estrutura curricular, dentre outros aspectos.
A filosofia da educação reformada buscará responder perguntas filosóficas básicas relacionadas à Educação: O que é educar, ensinar, aprender, para a educação reformada? Qual a necessidade ou a causa bíblica da educação? Qual é o propósito bíblico da educação? Quem são os responsáveis pela educação? A que perfil de aluno a educação reformada se dirige? Qual deve ser o conteúdo dessa instrução? Como os princípios cristãos se refletirão nas questões práticas e metodológicas da educação escolar? . E essas respostas devem estar de acordo com a visão de mundo reformada.
Gordon Clark, teólogo e educador reformado, ao constatar a decadência do ensino secular atual, aponta como sua causa exatamente a falta dessa cosmovisão, ou seja, a falta de uma abordagem unificada da vida que dê sentido ao estudo das disciplinas particulares e dirija os objetivos, métodos, e demais aspectos da educação. Segundo ele, é eminente a necessidade de uma filosofia educacional básica que governe e unifique a educação, e confira a ela um objetivo e um propósito definido. A partir dessas considerações, ele expõe sua concepção de cosmovisão:
Há apenas uma filosofia capaz de unificar a educação e a vida. Essa filosofia é a filosofia do teísmo cristão. O que se faz necessário é um sistema educacional baseado na soberania de Deus, pois em tal sistema, tanto o homem quanto o estudo da química serão colocados em seu devido lugar, nem tão elevados, nem tão baixos. Em tal sistema haveria um propósito último para o homem, que serviria para unificar e para servir de critério em todas as suas atividades. Faz-se necessário uma filosofia que esteja em consonância com o maior credo da cristandade, a Confissão de Fé de Westminster. Em tal sistema, Deus, assim como o homem, teria seu lugar apropriado. Somente isto fará a educação bem-sucedida, pois a desintegração social, moral, política e econômica de uma civilização não é nada mais que o sintoma e o resultado de um colapso religioso. As abominações da guerra, da peste e da catástrofe econômica são punições pelo crime, ou melhor, pelo pecado que é o esquecer-se de Deus. (CLARK, 2000, p. 23)
O que ele está afirmando, na realidade, é que a cosmovisão reformada tem fundamentos essencialmente teológicos. Ela é definida a partir de um referencial teológico bíblico-reformado, ou seja, um conjunto de ensinamentos, doutrinas, valores, premissas e pré-convicções bíblicas acerca da Bíblia, do homem, de Deus, de Cristo, da Igreja e da sociedade, que são chamados de pressupostos ou pressuposições teológicas. Também para ANGLADA, a “cosmovisão cristã genuína” está relacionada:
1) Ao conjunto de idéias, conceitos e concepções bíblico teológicas fundamentais que caracterizam o protestantismo histórico; 2) Às pressuposições bíblico-teológicas acerca de Deus, de Cristo, da Bíblia, do mundo e do homem, que governam o nosso pensamento, conduta e cultura” (2002, p.2)
Os pressupostos bíblicos que formam a visão de mundo reformada serão explicitados no capítulo seguinte, que analisará três eixos principais de pressupostos, a saber, os pressupostos sobre Deus, sobre a Bíblia e sobre o Homem.
[1] Esse texto é o primeiro capítulo da segunda parte da dissertação “História e Filosofia da Educação Cristã-Reformada”, por Karis B. G. Anglada Davis, apresentada como Trabalho de Conclusão de Curso à Universidade Estadual do Pará, em 2004, e será seguido pelos demais capítulos da parte filosófica. Os títulos dos capítulos, bem como o resumo e os dados bibliográficos dessa obra podem ser encontrados na postagem de apresentação e introdução.
[2] James Beeke é pastor e educador e coordenador da Netherlands Reformed Congregations (NRC) Educator´s Association.
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