Estaremos disponibilizando neste
blog a primeira parte da Dissertação "Fundamentos Históricos e
Filosóficos de uma Educação Bíblico-Reformada", Parte 1: Educação
Reformada: Uma Visão Histórica", numa versão condensada para leitura e
impressão. Trata-se de um breve histórico da Educação Reformada, desde as suas
raízes - que remetem à vida e a obra de Cristo e da primeira igreja cristã
apostólica - até uma visão panorâmica da educação reformada em diversos países
no mundo atual. A segunda parte desta monografia, sobre os "Fundamentos
Filosóficos da Educação Reformada" pode ser encontrada neste blog, na
seção de "Filosofia da Educação".
Os capítulos sobre os Fundamentos Históricos da Educação Bíblico
Reformada estarão listados dentro da seção de História da Educação,
possivelmente divididos em partes menores:
CAPÍTULO 2: A EDUCAÇÃO RELIGIOSA
REFORMADA( Post Atual)
CAPÍTULO 3: A EDUCAÇÃO REFORMADA NO
SÉCULO XVII
CAPÍTULO 4: HERANÇA REFORMADA NA
EDUCAÇÃO DOS PAÍSES PROTESTANTES
O leitor que desejar usar ou citar parte
deste trabalho pode fazê-lo, desde que indique os dados bibliográficos da obra,
abaixo:
ANGLADA, Karis Beatriz Gueiros
Fundamentos
Históricos e Filosóficos de uma Educação Bíblico-Reformada/ Karis Beatriz
Gueiros Anglada.
300 f.
Monografia (graduação) –
Universidade do Estado do Pará. Centro de Ciências Sociais e Educação. Belém,
2004.
Área de
Concentração: Educação
Orientador: Maria Betânia Barbosa
Albuquerque.
1. Educação 2. Filosofia 3. Religião
Cristã/Reformada
CAPÍTULO 2
A Educação Religiosa Reformada
2.1 O Advento da Reforma e seu Significado
2.1.1 Quando a Igreja Primitiva Cristã passou a ser Católica
Nos três primeiros séculos da religião cristã, os cristãos foram
duramente perseguidos pelo Império Romano, principalmente devido a sua
fidelidade antes à Bíblia do que ao Estado. “O cristão deveria obedecer ao
Estado, enquanto este não lhe exigisse uma violação de sua submissão moral e
espiritual a Deus” (CAIRNS, 1990, p. 77). Cairns (1990, p. 78) lembra ainda que
os primeiros cristãos tiveram de lutar em duas frentes: “ao mesmo tempo em que
lutava para preservar sua existência diante das tentativas do estado romano de
acabar com ela, a Igreja lutava também para preservar a pureza da doutrina”.
Ela teve que se posicionar contra as heresias provindas da filosofia grega
pagã, como o gnosticismo, o maniqueísmo, o neoplatonismo, e contra os desvios
teológicos provenientes de interpretações equivocadas ou ênfases exageradas, a
exemplo do montanismo, do monaquianismo, o donatismo, dentre outros.
As lutas internas causaram a necessidade da Igreja defender sua fé,
estabelecer o cânon dos livros inspirados, e escrever obras apologéticas.
Através desses mecanismos, o Cristianismo, mesmo fortemente perseguido, se
tornou muito forte dentro do Império Romano, de modo que já não poderia ser
destruído. O imperador Constantino percebeu isso e possivelmente se convenceu
de que o Deus dos cristãos era bastante forte e o fez desejar as orações dos
cristãos para abençoar seu governo, e é provável que tenha percebido também que
o Cristianismo, se fosse ajudado e fortalecido, constituía um poderoso elemento
para a unificação de todos os povos do Império (NICHOLS, 1981, p. 42-43). Sejam
quais fossem as suas intenções, o fato é que em 313, Constantino garantiu aos
cristãos a liberdade de culto pelo Edito de Milão, e Teodósio I promulgou em
380 um edito tornando o cristianismo a religião exclusiva do Estado, com
punição prevista para os que adotassem outra religião (CAIRNS, 1990, p.
100-101).
Com as invasões dos bárbaros e o declínio do Império Romano, a
Igreja enfrentou o problema duplo de ser “sal na terra” e “luz no mundo”.
Assim, como “sal”, deveria preservar a cultura heleno-hebraica, ameaçada de
destruição, e como luz, tinha a função de levar o Evangelho aos povos nômades
bárbaros. “Todavia”, lembra Cairns, “durante o processo de conservar a cultura
e converter os bárbaros, a Igreja perdeu muito de sua força espiritual, em
parte devido à secularização e à ingerência do Estado em seus negócios. O
desenvolvimento institucional e a doutrina foram negativamente afetados” (1990,
p. 99).
Por volta de 400 já se pode dizer que a Igreja primitiva havia
deixado de existir e a Igreja Católica como é conhecida até hoje tinha se
desenvolvido completamente, “com sua organização hierárquica completa, o clero
exercendo demasiado domínio espiritual sobre o povo, os concílios criando leis
eclesiásticas, o culto impressionante e cheio de mistérios, seus dogmas
autoritários e a condenação, como hereges, dos cristãos que não concordam ou
não se conformam com eles” (NICHOLS, 1981, p. 52). Além disso, foi adotada a
idéia agostiniana de que os primeiros bispos da Igreja foram escolhidos pelos
apóstolos, e recebiam, por sucessão regular, a plenitude dos dons do Espírito,
sendo os únicos capazes de preservar a fé pura, ministrar o ensino verdadeiro,
guardar os verdadeiros sacramentos e identificar a verdadeira Igreja Católica,
visto que somente na Igreja em que esses bispos se sucediam havia verdadeira
salvação (NICHOLS, 1981, p. 52-53). Com o crescimento do poder do bispo de
Roma, e o entendimento de que Pedro havia sido o primeiro bispo de Roma, Leão I
foi chamado de “o primeiro papa” (NICHOLS, 1981, p. 53). A Igreja Católica
predominou e cresceu em poder durante toda a Idade Média.
Por volta do século XV, final da Idade Média, a religião cristã
universal ou católica havia se distanciado completamente do cristianismo
bíblico em muitos sentidos. Tanto na sua doutrina e nas práticas litúrgicas,
quanto na vida moral. Doutrinas como a salvação pelas obras, o purgatório, a
mariolatria, a suprema autoridade papal, o celibato e o livre arbítrio foram
desenvolvidas pela Igreja medieval.
Quanto ao culto, a Igreja havia acrescido uma série de ritos e
práticas que destruíram a simplicidade do culto do Novo Testamento. Anglada
(1999, p. 15) elenca diversos elementos, entre eles a própria missa,
“considerada pela Igreja Católica como uma reedição não-cruenta do sacrifício
de Cristo”, a missa pelos mortos, a missa de sétimo dia, o confessionário, os
sete sacramentos, as indulgências, as penitências, a reza de terços, o sinal da
cruz, o uso do latim na missa, as imagens, os rosários, as peregrinações, as
procissões, as velas, as vestes sacras, os dias santos, etc., de modo que não
mais a Bíblia, mas as autoridades da Igreja Católica eram quem ditavam como
Deus deveria ser adorado.
A decadência doutrinária e litúrgica e o afastamento da Palavra de
Deus acarretaram uma decadência moral na Igreja medieval. Essa frouxidão moral
começara desde o século IV, com a adoção do Cristianismo como religião oficial
do Império Romano. O status de religião oficial atraiu um grande número de
pessoas ao cristianismo por interesses escusos, e a Igreja inchou de cristãos
professos, não sinceros. Nichols registra as conseqüências do favor imperial
para o Cristianismo:
(...) o poder oficial contribuiu para o
número de cristãos se dilatar. Este benefício foi, porém, duvidoso. Logo que Constantino
se constituiu patrono do Cristianismo, este tornou-se uma religião eivada de
heresias e inovações. Os sucessores desse imperador seguiram seu exemplo e com
mais ênfase. Eles sustentavam o Cristianismo, interferiam e exerciam autoridade
nos negócios da Igreja. (...) Na realidade, tal situação não constituía uma
vitória, pois o novo estado de coisas veio provar que nas igrejas havia
multidões que nada conheciam do Cristianismo, nem o possuíam. (1981, p. 44).
As conseqüências na vida da Igreja foram logo percebidas:
A entrada de multidões nas igrejas
impediram-nas de manter aquela vigilância e aquele escrúpulo necessários ao
preparo e ao exame cuidadoso dos candidatos, como sempre o fizera. A maioria
dos que entravam para a Igreja era realmente pagã, gente de vida reprovável.
Era natural que aparecesse uma queda do nível moral do caráter cristão (1981, p. 46).
O Estado tinha grande autoridade nos negócios eclesiásticos e a
Igreja nos do Estado, e a Igreja alcançara um poder e uma riqueza enormes, que
corrompiam seus oficiais. A corrupção do clero tem sido reconhecida como uma
das causas mais imediatas para a eclosão da Reforma do século XVI. A cobiça, a
avareza, a luxúria, a embriaguez, a glutonaria, a impureza sexual eram práticas
ordinárias praticadas pelo clero (ANGLADA, 1999, p. 16). Ao lado disso, o povo,
que deveria estar sob os cuidados espirituais e a assistência material da
Igreja, era abandonado pela negligência do clero.
A educação medieval também havia se afastado das primeiras práticas.
Grandemente influenciada pelo sistema escolástico, a educação combinava a
cultura cristã com elementos da cultura bárbara. A Igreja Católica controlou
totalmente a educação, e “durante muito tempo, o clero constituiu a maioria da
minoria intelectual, monopolizando o saber ler e escrever e acabou por dominar
as atividades culturais, formulando os princípios jurídicos e políticos do
mundo medieval” (RECCO, 2003, p. 1). Os mosteiros haviam se multiplicado e
constituíam praticamente as únicas escolas do período, que objetivavam a
formação eclesiástica. Essa educação não preparava para as várias atividades
normais da vida, mas enfatizava o fim religioso.
2.1.2 Origens e Eclosão da Reforma
Alguns no seio da própria Igreja Católica começaram a discernir e a
denunciar os abusos cometidos pela Igreja. Surgiram movimentos de protesto
desde o século XVII, com os Petrobrussianos, os Cataristas e Valdenses e os
irmãos. Os pré-reformadores, João Wycliff na Inglaterra, e João Huss, na
Boêmia, instalaram revoltas nos séculos XIV e XV contra a Igreja Católica,
contra a corrupção do clero, contra a autoridade papal. Wycliff foi o
responsável pela primeira tradução da Bíblia para a língua inglesa e Huss foi
martirizado, e seu martírio fortaleceu o espírito de revolta contra a autoridade
papal.
Nesse contexto de revolta, um destes monges, dedicando-se ao estudo
sincero das Escrituras Sagradas, passou a compreender antigas doutrinas
cristãs, e passou a lutar por uma reforma religiosa nas práticas da Igreja.
Esse homem foi Martinho Lutero, conhecido como o iniciador da Reforma.
No dia 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero afixou as famosas 95
teses na porta da capela de Wittenberg, na Alemanha, denunciando o falso ensino
e as práticas da Igreja Católica consideradas corrompidas, como a venda de
indulgências, a simonia, a avareza, a ambição política e a degradação dos
costumes morais por parte de grande parte do clero. Essas teses foram copiadas,
publicadas, e distribuídas por toda a Europa em poucos meses e se tornaram um
instrumento na promoção da Reforma do século XVI, a qual se aprofundou,
adquirindo caráter teológico, eclesiástico e litúrgico.
Há diversas versões a respeito da natureza da Reforma protestante,
de causas e das intenções dos reformadores, muitas das quais consideradas pelos
protestantes como versões distorcidas, freqüentes especialmente no contexto de
países de maioria católica como é o caso do Brasil. O historiador católico Rui
de Aires Bello (1969, p. 151), por exemplo, atribui como causa da reforma “o
caráter autoritário e impetuoso de Lutero”, e a preponderância de interesses
políticos sobre os de ordem religiosa, chegando ao ponto de afirmar, no âmbito
das conseqüências educacionais, que “foi por conseguinte inteiramente nula,
quando não negativa a influência da Reforma no conteúdo da educação” e que “ na
organização do ensino, a Reforma produziu as mais desastrosas conseqüências,
diminuindo o número de escolas e decrescendo a sua eficácia” (p. 160).
Os historiadores de um modo geral apresentam várias possibilidades
explicativas para as causas desse movimento. Além da corrupção que envolvia
grande parte do clero e dos protestos dos chamados pré-reformadores (DE ROSA,
1993, p. 139), a própria Renascença, com suas descobertas científicas
revolucionárias, a invenção da imprensa, o retorno à cultura clássica com a
disseminação da língua grega e o ressurgimento e elevação da mente humana que
anunciava novos caminhos, também é apontada como poderosa precursora da
renovação que se aproximava nas idéias religiosas.
O desenvolvimento do espírito crítico da corrente humanista típica
da renascença veio valorizar a individualidade livre ante qualquer coerção
exterior, o racionalismo, a tendência para observação, comparação, crítica e
insistência nas fontes originais, que também são características e
impulsionadores da Reforma. Esses fatores proporcionaram especialmente o
desenvolvimento de uma nova hermenêutica, que rompeu com a interpretação
alegórica medieval e enfatizou a necessidade de uma interpretação
histórico-gramatical da Bíblia.
As inquietações sociais, especialmente na Alemanha, e as revoltas
camponesas contra a exploração e indiferença dos nobres e sacerdotes que se
recusavam a fazer alguma coisa para libertar as camadas pobres (NICHOLS, 1981,
p. 141) também criaram uma situação favorável à Reforma. Além disso, outros
fatores sociais, políticos e econômicos acabaram se agregando ao movimento no
decorrer de seu desenvolvimento, a exemplo da adesão dos nobres e reis
interessados no confisco dos bens do clero e do apoio dos comerciantes que viam
no pensamento protestante uma libertação das restrições católicas quanto ao
lucro, e assim por diante.
A perspectiva reformada considera todas essas influências como tendo
seu lugar. Entretanto, enfatiza a natureza e as causas eminentemente
espirituais da Reforma, sobretudo as que permitiram a redescoberta do ensino
bíblico através de novas traduções, de edições das Escrituras publicadas nas
suas línguas originais, o grego e o hebraico, resgatados no Renascimento, e de
gramáticas desses idiomas, promovendo o interesse renovado pelas Escrituras e
possibilitando o acesso dos reformadores à Palavra de Deus. Foi a partir dessas
possibilidades que Lutero pôde, através de seu estudo e exposição no Livro dos
Salmos e na Epístola aos Romanos, constatar os erros da Igreja Católica e
discernir doutrinas revolucionárias como a da justificação pela fé somente e do
sacerdócio universal de todos os crentes.
Um dos aspectos em que o rompimento com a Igreja católica foi mais
forte e importante foi no campo doutrinário. A redescoberta das Escrituras e a
necessidade de se posicionar ante as práticas da Igreja Católica, ocasionaram o
desenvolvimento das doutrinas relacionadas às próprias Escrituras, como as
doutrinas da clareza, suficiência e suprema autoridade das Escrituras em
matéria de fé e prática, e a redescoberta da pregação da Palavra, que levou
adiante a Reforma. Resgatou-se ainda o conceito da gravidade do pecado, que não
podia ser banalizado e cujo resgate não poderia ser efetuado pelo dinheiro, mas
somente poderia ser expiado através do arrependimento e da fé na morte
expiatória de Cristo.
A doutrina considerada mais marcante da Reforma foi a da
justificação pela graça de Deus, somente pela fé, não atribuindo nenhum valor
salvífico às boas obras humanas. A doutrina do sacerdócio individual do crente
foi também um dos pilares da Reforma, pois apresentando a pessoa de Cristo como
único mediador entre Deus e os homens, concedia a cada salvo acesso direto à
presença de Deus por intermédio do sacrifício de Cristo na cruz e pela operação
do Espírito no homem interior, sem a necessidade da intermediação de qualquer
outro ser, o que pôs em xeque o ofício dos padres, dos santos, de Maria e do
Papa como intermediários entre os homens e Deus.
E, por fim, a Reforma apresentou o conceito da soberania e grandeza
de Deus e a aceitação de todos os Seus atributos como revelados nas Escrituras
Sagradas (amor, justiça, fidelidade, santidade, bondade, severidade, para citar
alguns), de forma que só Ele é infalível, e sua autoridade não pode ser
compartilhada com a do papa ou Concílios da Igreja.
2.1.3 Expansão e Significado Educacional da Reforma
Em suma, a reforma iniciada por Lutero ficou conhecida como a
Reforma Protestante. Ela foi um movimento de caráter religioso que teve início
na Europa do Século XVI com influências em grande parte do mundo, o qual
condenou as práticas e ensinos da Igreja Católica medieval, e propôs o retorno
às Escrituras Sagradas em suas línguas originais na busca de uma correta
interpretação. Este movimento culminou com a divisão da Igreja cristã em dois
grupos principais e antagônicos em muitos aspectos: católicos e protestantes.
A reforma iniciada na Alemanha expandiu-se para outros países na
Europa, e mesmo nações como a Espanha e a Itália sentiram a influência daquele
despertamento religioso. A Reforma, entretanto, foi bem mais intensa e profunda
na Suíça, na França, nos Países Baixos, na Escócia e na Inglaterra. Entre os
protestantes, houve algumas discordâncias em torno de certos pontos doutrinários
ou litúrgicos menos importantes, gerando algumas ramificações. Na Alemanha, a
Igreja Luterana tomou formas bem específicas. Na Inglaterra, ocorreu o mesmo
com a Igreja Anglicana. E nos demais países, especialmente na França, Suíça e
Escócia, o líder Calvino fundou a Igreja Calvinista ou Reformada no sentido
estrito do termo.
A Reforma é entendida como um dos eventos mais cruciais na história
do Cristianismo depois da vinda de Cristo ao mundo. Ela imprimiu novos rumos à
Religião Cristã, e o fez a partir do retorno ao Cristianismo simples da Igreja
Primitiva e da redescoberta da Bíblia como a palavra autoritativa de Deus.
Deste evento ocorrido no século XVI originaram-se as Igrejas protestantes, que
se opuseram e se distanciaram do Catolicismo romano em suas doutrinas e
práticas, estabelecendo princípios que não se limitaram àquele tempo e espaço
históricos, mas até hoje orientam a vida das Igrejas, da mentalidade, e por
conseguinte, do pensamento educacional reformado.
É a este evento histórico que remonta a fé “reformada” como
mantenedora e propulsora da educação reformada estudada e proposta neste
trabalho, entendida como representante e defensora do Cristianismo bíblico e
simples. Terry L. Johnson (2001, p. 39) deixa claro o sentido desse termo:
O que quero dizer com “reformada”, é
aquela tradição teológica cujas raízes remontam a Calvino – e, talvez, alguém
poderia contestar e dizer: vão até Agostinho, antes de Calvino. Mas nós nos
referimos primeiramente às reformas do século XVI, reformas das corrupções do
final do período da Igreja Medieval e Renascentista, e o movimento que estas
produziram. Referimo-nos à herança calvinista emanante de Genebra, que resultou
nas Igrejas Reformadas Suíças, Holandesas e Alemães; no mundo anglo-saxônico
resultou na Igreja Reformada Escocesa, que ficou conhecida como Presbiteriana;
resultou, também, no Puritanismo Inglês, no Puritanismo da Nova Inglaterra e
também na antiga escola de Princeton.
Daí a importância de se conhecer mais a fundo as conseqüências
educacionais desse movimento determinante para a história da Igreja e para o
entendimento apropriado da concepção religiosa que define a perspectiva desse
trabalho sobre a educação reformada.
O advento da Reforma Protestante, e principalmente suas doutrinas,
tem implicações diretas e indiretas sobre a educação de modo geral, e sobre a
educação reformada de modo particular. Os principais reformadores perceberam
isso, e trataram, juntamente com o problema eclesiástico, dos problemas sociais
e educacionais de seu tempo, estudando soluções, fazendo propostas e
envolvendo-se numa obra de reforma educacional, que tinha como centro a Bíblia
e seu ensino e o acesso de todos às suas verdades.
Pretende-se que uma análise das contribuições pedagógicas dos
reformadores e do desenvolvimento histórico da Reforma evidencie as suas
principais doutrinas e princípios educacionais.
2.2 Principais Reformadores e sua Pedagogia
2.2.1 Pedagogos da Reforma Luterana
Dentre os Reformadores, Martinho Lutero (1483-1546) foi o que
primeiro estimulou a formulação de um novo sistema educacional, por meio de
impulso pessoal e político, utilizando-se de suas cartas e influência junto aos
nobres alemães. Lutero discernia o declínio e a ruína da educação que era
oferecida (quando oferecida) às crianças nas escolas, universidades e
monastérios medievais. Segundo ele, os pais não consideravam o ensino
ministrado nos monastérios proveitoso para quem não desejasse ser padre, e por
isso já não enviavam seus filhos à escola, antes preferiam que trabalhassem em
coisas úteis para ganhar a vida.
Desde 1516 é possível encontrar referências espalhadas nos escritos
de Lutero relacionadas à importância de uma educação completa e minuciosa para
um povo que segundo ele era pobre, jovem, sem direção e instrução. Lutero
escreveu também algumas obras especificamente educacionais, que demonstram a
sua preocupação com a situação educacional na Alemanha. Elas evidenciam a
importância que este reformador conferia à instrução dos jovens tanto para o
desenvolvimento da Reforma religiosa, como para o crescimento e fortalecimento
da cidade no âmbito político, econômico, social e cultural. Esse posicionamento
de Lutero em suas obras e ações no campo educacional são fatores que vieram a
influenciar professores, pregadores e governantes por toda a Alemanha e
encorajaram muitos teólogos a considerarem o papel da educação na sociedade.
O pensamento político-educacional de Lutero é um dos aspectos
estudados até hoje por ter sido ele o primeiro a deslocar da Igreja para o
Estado o direito e o dever de educar (CESCA, 1997). Nesse sentido, mesmo
escritores católicos reconhecem que a doutrina pedagógica de Lutero mostrou-se
original quanto à “ênfase estabelecida sobre a missão educativa do Estado, como
também, a obrigatoriedade escolar, o que para a época, constituía sem dúvida
uma grande inovação” (BELLO, 1969, p. 153).
Lutero trabalhou, juntamente com seu colaborador Melânchthon
(1479-1560), para a implantação da escola primária para todos, e defendia a
educação universal e pública. Paul Monroe (1988, p. 178) considera o caráter
tríplice do movimento educacional estabelecido por Lutero:
(...) lutava para libertar a educação,
através do Estado, das peias que a Igreja viera forjando durante séculos;
empenhava-se para a disseminação mais ampla
das oportunidades para a educação; sustentava uma concepção mais verdadeira da
função da educação na vida religiosa e secular.
O pensamento educacional de Lutero pode ser melhor estudado a partir
de três de suas obras educacionais. São elas a carta Para os membros dos
Conselhos de Todas as Cidades na Alemanha para que estabeleçam e mantenham
Escolas Cristãs (1524); um Sermão sobre a Manutenção de Crianças na
Escola (1530), publicado na forma de carta aberta, e Instruções para
Supervisores em Visita às Congregações da Saxônia, uma interessante
descrição da organização e do currículo proposto por Lutero para uma escola
cristã. Cabe examinar alguns pontos que se destacam nestas obras.
A carta Para os membros dos Conselhos de Todas as Cidades na
Alemanha para que estabeleçam e mantenham Escolas Cristãs (1524) foi
escrita em resposta ao declínio das escolas eclesiásticas bem como ao
sentimento anti-educacional que surgiu em vários lugares na Alemanha. Esse
clima anti-educacional estava ligado à natureza da instrução oferecida pelas
escolas eclesiásticas e mosteiros, considerada inútil para quem não estivesse
interessado em ser oficial da Igreja, e essa falta de reconhecimento social se
refletiu no decrescente número de alunos matriculados. Em vista disso, Lutero
insta os leitores, convocando-os a darem a devida importância à educação dos
jovens e à formação de bons professores:
Se é necessário, caros senhores, gastar
anualmente grandes somas para compra de armas, estradas, represas e tantos
outros itens para que uma cidade possa gozar de paz e prosperidade temporal,
por que não deveríamos ao menos fazer o mesmo para a pobre e necessitada
juventude, a fim de termos alguns bons e competentes professores nas escolas?
(1995, p. 303)
As motivações oferecidas para que cada cidadão considere e venha a
apoiar a educação cristã são três: 1) este é um bom e precioso investimento, em
comparação com o gasto com a venda de indulgências, missas, vigílias,
testamentos, comemorações, esmolas, peregrinações, etc., a que os cristão
católicos estavam submetidos e haviam sido libertos pela Reforma. 2) o povo
alemão não deveria desperdiçar esta oportunidade que lhe estava sendo oferecida
de acesso à Palavra de Deus, de educação de qualidade em pouco tempo e
incentivo à arte, pois isto era um dom da graça de Deus que a qualquer momento
lhe poderia ser retirado. Como insistiu Lutero:
Temos no presente, os mais excelentes e
letrados homens, possuidores de boa linguagem e adornados com arte, que podem
prestar inestimável serviço, se os usarmos como instrutores de nossos jovens.
Será que não é evidente que agora temos condições de preparar um jovem em três
anos e assim aos quinze ou dezoito anos este jovem terá recebido mais do que se
estivesse freqüentando universidades e monastérios até agora (1995, p. 304).
E ainda 3) a educação dos jovens é mandamento de Deus, evidenciado
em muitas passagens das Sagradas Escrituras, tanto no Antigo como no Novo
testamento, e assim constitui um pecado para os pais negligenciar o propósito
final de suas vidas, a saber, o cuidado para com os seus filhos. Lutero
expressou essa idéia de modo contundente: “Acredito firmemente que entre os
pecados contra nossos semelhantes, nenhum pesa tanto contra o mundo aos olhos
de Deus ou mereça tão severo castigo, quanto o pecado que cometemos contra
nossos filhos por não darmos a eles adequada educação.” (1995, p.305).
Embora Lutero considere que a responsabilidade primordial da
educação dos filhos pertença aos pais, ele reconhece que existem diversas
razões pelas quais os pais negligenciam seus deveres, razões que muitas vezes
estão acima de si mesmos. Há pais que mesmo que tivessem a habilidade para
fazê-lo, não o fariam por falta de piedade e decência; a grande maioria dos
pais não está especificamente capacitada para este trabalho, pois eles mesmos
não foram adequadamente educados, faltando-lhe as habilidades para ensinar de
modo apropriado; e há a situação em que ainda que os pais fossem aptos e
desejosos de educar os seus filhos, lhes faltaria tempo e oportunidade para
tal, pelos seus muitos afazeres e obrigações. “A necessidade nos compele,
portanto, para que tenhamos mestres e escolas públicas para nossos filhos...
Isso posto, mostra portanto, que é dever dos conselheiros e magistrados devotar
grande cuidado e atenção aos jovens”. (p. 4)
Assim, quando os pais negligenciam seu dever, alguém tem de assumir
a responsabilidade pela educação dos jovens, e neste momento Lutero volta-se
aos conselheiros e magistrados, exortando-os a assumirem esta responsabilidade
e tarefa. Segundo ele, isto seria de muito bom proveito para o próprio governo
civil e desenvolvimento da cidade:
(...) O maior patrimônio, segurança, bem
estar e força de uma cidade consiste em ter muitos cidadãos instruídos,
capazes, sábios, honrados e bem-educados, capazes de acumular tesouros,
conservá-los e usa-los bem, levando ao bem-estar de todos na cidade. (LUTERO,
1995, p. 308).
A questão na verdade é como ter pessoas
habilidosas e treinadas no governo. Com relação ao assunto, somos desafiados e
envergonhados pelos ímpios, pois em tempos passados, especialmente os gregos e
romanos, sem saber que isto agradava a Deus, instruíam e educavam seus filhos e
filhas com tanto empenho que se tornavam realmente hábeis: tanto que me
envergonho de nossos cristãos e especialmente de nós, alemães, por sermos tão
completamente embrutecidos e de visão curta, que ousamos dizer: “para que
servem as escolas, se não vamos nos tornar padres?” Não obstante sabemos, ou
deveríamos saber o quanto é necessário, útil e agradável a Deus que um
príncipe, senhor ou conselheiro seja instruído e capaz de viver cristãmente
segundo sua condição.
E, como disse, mesmo se não existisse a
alma e não fossem necessárias a escola e as línguas para conhecer as Escrituras
e a Deus, todavia, para que se estabelecessem em todos os lugares as melhores
escolas, tanto para meninos como para meninas, bastaria só esta razão: que o
mundo, para conservar exteriormente sua propriedade temporal, precisa de homens
e mulheres instruídos e capazes; de modo que os homens sejam capazes de
governar adequadamente cidades e cidadãos e as mulheres capazes de dirigir e
manter a casa, as crianças e os servos. Ora, homens desse tipo devem ser
educados assim desde crianças, como também tais mulheres se educam assim desde
pequenas. Portanto, é necessário que meninos e meninas sejam bem-educados e
instruídos desde a infância”. ( LUTERO, 1995, p. 312)
Lutero delineia ainda um novo tipo de escola, em que as crianças
possam estudar com satisfação e prazer, aprendendo línguas, artes, história,
matemática, canto, como sendo para os jovens entretenimento, e isto os daria
formidáveis habilidades para se tornarem aptos em vários campos. A que os
jovens freqüentem essas escolas Lutero exorta não só a governantes como também
aos pais, para que não privem seus filhos dessas escolas apenas por não
quererem que seus filhos sejam tirados de seus afazeres domésticos.
Lutero esforça-se por tentar conciliar o trabalho manual produtivo
com a importância do trabalho intelectual:
Minha idéia é que os meninos freqüentem
essas escolas por uma ou duas horas ao dia e o tempo restante seja gasto
trabalhando em casa, aprendendo uma profissão ou fazendo o que quer que seus
pais desejem; para que, tanto estudo como trabalho andem de mãos dadas,
enquanto eles são jovens e capazes de fazer ambos. (LUTERO, 1995, p. 313).
FABER (1998, p. 3-4) no seu comentário sobre esta carta de Lutero de
1524 ressalta ainda outro aspecto nela desenvolvido:
(...) não somente o Estado se
beneficiaria de uma educação reformada, mas também – e especialmente – a
Igreja. Aqui, também, Lutero defendeu o estudo da vida e da literatura antiga,
pois estava convencido de que o conhecimento da antiguidade produziria crentes
com uma melhor compreensão do contexto histórico, social e lingüístico da
Bíblia.
Para isso, as Escrituras deveriam ser preservadas e estudadas com
diligência em suas línguas originais, para que a Palavra de Deus viesse a ser
um livro aberto. Encontramos ainda uma importante exortação de Lutero para que
não sejam medidos esforços nem custos para a construção de boas bibliotecas,
especialmente nas maiores cidades, as quais se constituiriam de uma seleção dos
melhores livros, que incluiriam a Bíblia em todas as línguas existentes, os
melhores comentários bíblicos, os livros que auxiliassem no aprendizado de
idiomas e de gramática, os livros de artes liberais e de todas as outras artes,
além de livros de direito e medicina.
Outro tratado de Lutero sobre a educação é o Sermão sobre a
Manutenção das Crianças na Escola, de 1530, destinada aos pregadores
reformados de todo o país, aos quais deseja convencer acerca das vantagens da
educação cristã para o desenvolvimento espiritual do cristão. Neste sermão, o
foco recai não mais na necessidade da educação ou no incentivo ao estabelecimento
de escolas, mas no desenvolvimento apropriado delas e de seus currículos.
Lutero estabelece que o fundamento e o objetivo da educação é o conhecimento da
Escritura, ou seja, levar as crianças a aprender mais sobre Deus e suas obras
no mundo criado e na história, embora reconhecesse que a educação por si
própria não contribuía para a salvação e piedade do crente:
A corrupção da vontade humana,
argumentava Lutero, é tão grande que sem a justiça de Deus ninguém pode
progredir na piedade, muito menos ser salvo. Igualmente condenados diante de
Deus, todos os crentes são igualmente salvos através da graça de Deus, mediante
a fé na morte de Cristo – não obstante a educação. Sem o Evangelho, portanto, a
educação não tem sentido. E é somente da perspectiva do Evangelho que a
educação pode ser valorizada. Sobre o fundamento das Escrituras, todos os
jovens deveriam buscar a educação como um meio de se tornarem homens e mulheres
responsáveis, que podem governar igrejas, países, pessoas e suas casas. (
FABER, 1998, p.5).
Em resposta ao materialismo crescente entre seus compatriotas que
objetivavam na educação de seus filhos apenas sua riqueza e confortos físicos e
não o espiritual, Lutero argumenta em toda a carta a real função da esfera
secular e sua relação com o reino de Deus:
(...) a real função da esfera secular é
(...) produzir uma sociedade ordeira, justa e pacífica na qual o estado
espiritual possa ser promovido. Justiça, ordem social e a preservação da vida
estão compreendidas na jurisdição do governo secular, o qual deve ser exercido
por pessoas devidamente educadas para tais tarefas. Deste modo, o reino
temporal promove o reino de Deus na terra, à medida que é subserviente à sua
Palavra e busca melhorar a conduta de acordo com a sua vontade. Também por esta
razão, “é dever da autoridade secular compelir seus súditos a manter seus
filhos na escola... de forma que sempre haja pregadores, juristas, pastores,
escritores, médicos, diretores de escola e outros... (256)” . Afinal, no reino
secular, “toda ocupação tem sua própria honra diante de Deus, bem como seus
próprios requisitos e deveres (246). (FABER, 1998, p. 5).
O terceiro escrito assinado por Lutero, mas redigido por seu
colaborador Melanchthon, também de grande importância educacional, encontra-se
entre suas Instruções para Supervisores em visita às Congregações da Saxônia.
Desta vez Lutero insiste com os pregadores, para que exortem as pessoas a
enviarem seus filhos a escola, para que cresçam pessoas habilitadas para o
serviço de Deus nas Igrejas e no governo secular.
Ao detectar “muita falha nas escolas” (LUTERO; MELÂNCHTHON, p. 314),
Lutero e Melanchthon estabelecem um programa de estudo, para que os jovens
possam ser instruídos corretamente. Três orientações iniciais são dadas: a
educação deve se iniciar com o ensino do Latim; as crianças não devem ser
sobrecarregadas com muitos livros e com a multiplicidade de tarefas e
conteúdos; as crianças devem ser dividas em grupos.
Estes grupos são chamados de Primeira, Segunda e Terceira Classe, e
Lutero chega a detalhar os conteúdos e métodos a serem desenvolvidos em cada
uma. A primeira classe consiste das crianças que estão começando a ler e devem
aprender primeiro a ler a cartilha com o Alfabeto, Pai Nosso, Credo e outras
orações, depois aumentar seu vocabulário com os versos de Cato e Donatus, e
esta etapa inclui treinar a escrita, memorização de novo vocabulário, música e
canto.
A segunda classe consiste das crianças que já podem ler e devem
agora aprender gramática. Seu currículo inclui a música, os escritos de Esopo,
Mosselanus e Erasmo, Terence, Plautus, que consistiam de fábulas e provérbios
e, dentro da gramática, devem aprender etimologia, sintaxe e prosódia, nesta
ordem. As atividades de sala de aula incluem interpretação de texto, leitura de
livros, recitar o Pai Nosso, o Credo, os Dez Mandamentos e aprender sua interpretação
com vistas ao temor do Senhor, à fé e às boas obras, memorização de Salmos
fáceis e exposição gramatical ou não dos livros bíblicos mais simples.
Ressalta-se sempre o cuidado para não sobrecarregar os jovens com muitos livros
e conteúdos, e também com o equilíbrio entre o ensino da Palavra de Deus e o
ensino de autores e disciplinas seculares, pois Lutero considera ambos
importantes e complementares na formação de seus alunos.
A Terceira Classe consiste de um grupo formado com as melhores
crianças que desejassem continuar seus estudos. Estas estudariam Virgílio,
Ovídio, Cícero, gramática, especialmente a prosódia, onde aprenderiam a compor
versos, fariam outros exercícios escritos e, dominada a gramática e o Latim,
poderiam dedicar-se à dialética e retórica.
Houve, no contexto da reforma alemã, outros educadores importantes,
como o já citado Felipe Melanchthon (1479-1560), denominado o Preceptor
da Alemanha, visto ter sido, para a Alemanha, na reforma educacional, o que
Lutero foi na Reforma religiosa. De fato, Monroe comenta que:
(...) por ocasião de sua morte, quase não
havia uma cidade em toda a Alemanha que não tivesse modificado as suas escolas,
de acordo com o conselho direto de Melanchthon, ou suas sugestões gerais, e não
havia quase nenhuma escola de alguma importância que não contasse com alguns de
seus alunos entre seus professores. (MONROE, 1988, p. 179).
O centro irradiador destas influências foi a Universidade de
Wittenberg, onde Melanchthon trabalhou ao lado de Lutero, os últimos 40 anos de
sua vida. Sob sua influência, a universidade foi remodelada segundo os
princípios protestantes e humanistas, tornando-se modelo de muitas
universidades novas da Alemanha e dela saíam ou eram influenciados professores
dos mais ilustres da época, como Neander, Trotzendorf e Sturm.
Mas foram os inúmeros escritos de Melanchthon que mais o aproximaram
do alunado, especialmente os seus livros didáticos. Escreveu uma gramática
grega, uma gramática latina e livros sobre dialética, retórica, ética, física,
história, os quais foram adotados com sucesso nas escolas elementares e também
sua teologia tornou-se livro didático para as universidades e escolas
superiores protestantes. Seus escritos pedagógicos consistem principalmente em
discursos inaugurais ou conferências para estudantes sobre o valor do estudo da
literatura e da filosofia.
Destacam-se ainda, dentre os pedagogos da reforma luterana Johannes
Bugenhagen (1485-1558), Johan Sturm (1507-1589) e Valentim Trotzendorf
(1490-1556).
2.2.2 Pedagogos da Reforma Calvinista
João Calvino (1509-1564) é considerado o mais importante
sistematizador da Reforma. Entre suas principais realizações estão seu famoso
livro “As Institutas da Religião Cristã”, em que organiza e expressa a teologia
reformada, inúmeros escritos e comentários bíblicos, e a marcante obra de
reforma realizada e aplicada na cidade de Genebra durante os 26 anos em que ali
governou, em que destacamos sua reforma educacional.
Com o propósito de tornar Genebra uma cidade cristã modelo, Calvino
previu os meios para alcançá-lo: a reorganização da Igreja e de seu papel de
liderança; a implementação de leis que expressassem a moral bíblica e um
sistema educacional da maior qualidade.
Além do inigualável incentivo que deu à educação na Suíça, Calvino
inspirou o desenvolvimento do protestantismo em toda parte, influenciando a
reforma francesa, holandesa, escocesa e inglesa, com o que ficou conhecido como
um reformador internacional.
Entusiasta estudioso do humanismo, Calvino reconhece o papel
determinante da educação para preservar a igreja sã, garantir a administração
pública e manter a humanidade entre os homens (GILES, 1987, p. 126).
Calvino não escreveu nenhum tratado específico sobre educação, mas é
possível apreender de seus escritos e da obra educacional em Genebra as suas
principais idéias e concepções acerca da natureza, propósito e responsabilidade
da educação.
No estudo que T. M. Moore (1984) faz sobre a filosofia educacional
de Calvino, ele destaca que, quanto à natureza e propósito da educação, Calvino
via o ensino como meio de “promover o reino de Deus e promover o bem público”
(1953, p. 24) através da preservação, juntamente com a pregação do Evangelho,
das verdades da Palavra de Deus em face aos ensinos e práticas de seu tempo,
que considerava como mentiras e deturpações.
A educação, portanto, não tinha seu fim em si mesma, mas era um meio
que deveria levar à glória de Deus e à edificação da sua Igreja, podendo ser
medida em termos de sua eficácia na consecução destes objetivos.
No que concerne à responsabilidade pela educação, Calvino postulava
a responsabilidade mútua, tanto por parte do governo como das famílias através
da Igreja. Para ele, “tanto os magistrados como a família teriam o seu papel na
obra de educação, mas seria primariamente através da Igreja que esta tarefa
seria organizada e realizada” (NAUTA, 1559 apud. MOORE, 1984, p. 145).
Dessa forma, a obra de educação deveria ser supervisionada e
desenvolvida pela Igreja, representada por seus pastores, mestres e oficiais
eleitos e norteada pelas Escrituras Sagradas, que são a única regra infalível
de fé e conduta tanto para o crente individual quanto para a Igreja como um
todo. A Igreja se envolvia diretamente na obra educacional pela pregação (que
visava a instrução e edificação dos adultos) e pelo ensino do catecismo
(principalmente para as crianças) e indiretamente através de um sistema
educacional supervisionado pela Igreja.
O sistema educacional na Genebra de Calvino se desenvolveu em três
níveis, elementar, secundário e universitário. A educação elementar era
oferecida para todos no idioma vernáculo, que compreendia o ensino religioso no
catecismo, além de leitura, escrita, aritmética, religião e exercícios de
gramática (LUZURIAGA, 1987, p. 112).
Fundou ainda as escolas para as meninas, de que pouco se conhece, e
os famosos Colleges, escolas secundárias preparatórias para a Universidade, em
que se deveriam formar meninos nas línguas, na literatura clássica, na
filosofia e na instrução religiosa, com vistas à formação de funcionários civis
e eclesiásticos (LUZURIAGA, 1987, p. 112).
Na Universidade, deveria ser estudada “a teologia, as ciências e a
matemática. Após a morte de Calvino foram incluídos no currículo Medicina e
Direito. O propósito principal da Universidade era eminentemente prático, qual
seja, preparar jovens para o ministério ou para o serviço do governo” (MOORE,
1984, p. 158). Em sua análise, Moore afirma que
(...) o âmbito desse programa de
educação, juntamente com sua diversidade e durabilidade, demonstram o aspecto
prático e a força da filosofia educacional de Calvino. Através dessas
instituições, a Igreja, por meio de sua liderança eleita, poderia prover a
instrução do povo de Cristo. O processo envolvia tanto o lar como o governo
civil, mas concentrava-se principalmente na liderança e na supervisão dos
pastores e dos mestres (1984, p.148)
Embora não se possa afirmar que Calvino desenvolveu uma teoria do
aprendizado propriamente dita, em seu estudo, Moore extrai e relaciona alguns
princípios epistemológicos do pensamento de Calvino.
Calvino entende que o homem é um ser por natureza movido a aprender.
O Deus criador depositou na mente humana a semente da religião e Ele mesmo
manifesta-se ao homem no Universo criado, na Sua palavra revelada, a Bíblia, e
na pessoa de Cristo, a imagem de Deus e a expressão exata do seu ser (Bíblia
Sagrada, 1993, Colossenses 1:15).
Este conhecimento de Deus, conquanto não seja negado pelos homens, é
obtido através do labor intelectual e da obra de iluminação do Espírito Santo
nos corações e nas mentes daqueles que desejam conhecer a Deus (MOORE, 1984, p.
149).
A aprendizagem consiste de conteúdo e aplicação. O conteúdo
focaliza: o conhecimento do Deus Criador, que se volta para as obras de Deus na
natureza e no universo e remete ao estudo das ciências; o conhecimento do Deus
Redentor pela fé em Cristo e que leva o homem a “buscar a Deus, cultuá-lo,
confiar nEle, temê-lo, ser grato e glorificá-lo” (Institutas, 1.2.1,
1.5.10, 1.2.1); e o conhecimento de si próprio, do fim para o qual foi criado,
e das qualidades com as quais foi dotado, conteúdos que orientam o homem para
Deus, na medida em que, considerando suas faculdades (ou falta delas), o homem
é levado à humilhação, à confiança no Redentor e à gratidão a Deus.
A aplicação implica na transformação e renovação da mente, coração e
vontade do aprendiz. Segundo Moore, “era esse tipo de aprendizado, que envolvia
o homem por completo, que Calvino desejava efetivar nos seus alunos e no seu
rebanho.” (1984, p. 151).
Dentre os objetivos do aprendizado, a julgar pelo tríplice alvo do
estudo do catecismo (uma apresentação oral; a exposição de um resumo do
conteúdo aprendido e a profissão de fé da criança perante a congregação),
estavam inclusos um objetivo psicomotor, um cognitivo e um afetivo, para usar
de terminologia contemporânea (MOORE, 1984, p. 155).
Os alunos e professores deveriam ter clara noção de seus deveres e
responsabilidades. Da parte dos alunos, era-lhes exigida a participação ativa e
fiel no culto público, onde poderiam ser instruídos, a diligência no estudo
pessoal, principalmente das Escrituras, e a vigilância sobre sua própria vida,
ou seja, o esforço para praticarem o que estavam aprendendo (MOORE, 1984, p.
154). Da parte dos professores, Calvino enfatizava a necessidade da diligência,
do preparo adequado e da fidelidade à Palavra de Deus.
Quanto ao método de instrução, Calvino defendia o uso de métodos
variados, apropriados a audiências, contextos e propósitos diferenciados, a
saber, a palestra para os sermões públicos e instrução de adultos; a catequese
para as crianças na igreja, a leitura individual e pública e o ensino com tutor
particular (MOORE, 1984, p. 154).
H. D. FORSTER sumariza desse modo as características da educação
calvinista:
Acentuação do elemento leigo na educação;
preparação para a “república” e para a “sociedade”, tanto quanto para a Igreja;
insistência na virtude e no conhecimento; exigência de larga educação como
essencial para a liberdade de consciência; amplo sistema de educação elementar,
secundária e universitária, tanto para os pobres como para os ricos; enorme
conhecimento das Escrituras, ainda entre as classes mais pobres; utilização da
organização representativa da Igreja para fundar, sustentar e unificar a
educação; disposição de sacrificar-se pela educação, realizando-a a todo custo;
inspeção, de forma coletiva, de professores e estudantes; grande acentuação do
emprego da língua vernácula e, finalmente, espírito progressivo de indagação e
investigação (FORSTER apud. LUZURIAGA, 1987, p. 113).
Da Reforma Calvinista, dois outros nomes podem ser mencionados que
representam a educação calvinista, os reformadores Zwínglio, na Suíça e John
Knox, na Escócia.
Zwínglio (1484-1532), reformador suíço
considerado precursor de Calvino e “porta-voz convicto da primazia da autoridade
das Escrituras” (GILES, 1987, p. 125), animou a formação de escolas elementares
e foi autor do primeiro tratado educacional do ponto de vista protestante: “A
Maneira de Instruir e Educar Meninos Cristãmente”.
De maneira direta, Zwínglio interferiu na reforma educacional suíça
reestruturando duas escolas associadas à Igreja Great Minister, e conduzindo as
atividades de uma reunião diária de peritos na Bíblia que expunham as
Escrituras e contribuíram para uma tradução suíça-alemã da Bíblia (FABER, 1999a,
p.1).
O pensamento educacional deste reformador pode ser encontrado a
partir dos princípios norteadores dessa obra, cujo título pode ser também
traduzido: “Sobre a Criação e Educação do Jovem na Disciplina Cristã e nas Boas
Maneiras”(1523)
Faber (1999a, p. 1) relaciona em um artigo observações
que Zwínglio fez acerca da base da instrução reformada, da formação de um
caráter moralmente correto e do serviço a outros como resultado de uma criação
apropriada. Este tratado é dividido em três seções: 1) “como a mente imatura do
jovem deve ser instruída nas coisas de Deus”, ou seja, princípios reformados
que estão por trás da criação e educação; 2) “como o jovem deve ser instruído
no que concerne a si mesmo”, ou seja, a maneira como um jovem progride como
cristão; e 3) “como o jovem deve ser instruído na sua conduta em relação a
outras pessoas”, ou o comportamento cristão no contexto social” (FABER, 1999a,
p. 2). Zwínglio parte da premissa de que “embora a educação seja muito
importante, ela não pode conduzir à fé salvífica” (FABER, 1999a, p. 2). O
conhecimento de Deus e a fé salvadora em Cristo é uma concessão da graça divina
operada nas mentes e corações e portanto, “todo aprendizado está sujeito à
graça de Deus” (FABER, 1999a, p. 2).
Conquanto a sabedoria humana não produz fé e confiança em Cristo, e
desde que o Espírito emprega a Bíblia para a operar a fé, “deveríamos aprender
o Evangelho com toda exatidão e diligência” (ZWÍNGLIO, 1953, p. 108). Daí seu
argumento de que a Escritura deveria ser o ponto inicial para uma discussão
sobre educação.
Outra premissa encontrada em seu tratado é a de que “o conhecimento
depende da providência de Deus” (FABER, 1999a, p. 3). Assim, Zwínglio declara
que o objeto do aprendizado é o universo e tudo o que ele contém e o estudo dessa
ordem das coisas criadas revela que existe alguém superior a eles, Deus, cujo
poder as criou e cuja providência as ordena e mantém.
Quanto ao aprendizado humano, Zwínglio parte da idéia de que é
preciso reconhecer que o homem em sua habilidade de aprender foi afetado pela
queda e pecado original e atuais, segundo a doutrina da depravação do homem, o
que deveria humilhar os homens e leva-los à confiança na graça de Deus. Da
doutrina da Redenção, toma o princípio de que “o sacrifício redentor do Senhor Jesus
Cristo dá à educação um novo significado e propósito” (FABER, 1999, p. 4), pois
Cristo se tornou “ nossa sabedoria, nossa justiça, santificação e redenção”
(Bíblia Sagrada, I Co 1:30). O crente redimido, ainda que pecador, “busca viver
para Deus e conhecê-lo através do estudo de sua Palavra e do mundo que Ele
criou” (p. 4), sendo capacitado pelo Espírito Santo “a empregar a educação com
o propósito apropriado de servir a Deus e seus semelhantes.”
No que se refere à instrução do jovem sobre si mesmo, Zwínglio
assinala a necessidade da base bíblica para todo desenvolvimento moral e
intelectual e de “um espírito humilde e sequioso” (ZWÍNGLIO, 1953, p. 109) para
receber a instrução da Escritura, posto que o temor do Senhor é o princípio do
saber e que a centralidade do conhecimento de Cristo é fundamental, primeiro
como o salvador do mundo, mas também como o exemplo excelente de uma conduta
reta, a quem o jovem deve buscar seguir.
Na última seção, que diz respeito à conduta do jovem em relação às
outras pessoas, “Zwínglio deseja convencer seus leitores que servir aos outros
é a conseqüência mais importante de uma instrução adequada” (FABER, 1999a, p.
5). E porque “Cristo se entregou à morte em nosso favor e se tornou nosso,
devemos nos entregar em favor de todos os homens, não considerando que somos de
nós mesmos, mas que pertencemos aos outros” (ZWÍNGLIO, 1999, p. 113). Assim, a
educação formal e a criação dos pais deveria preparar o jovem para “servir a
comunidade cristã, o bem comum, o Estado e os indivíduos” (p. 113).
Para alcançar o objetivo maior de auxiliar na formação de um caráter
cristão, a educação reformada deve focalizar três aspectos da conduta pública:
o comportamento do crente, cujas ações devem ser movidas pelo empenho no
serviço aos outros com fidelidade, justiça, honestidade e constância (FABER,
1999a, p. 5); a linguagem, que revela o coração e portanto deve ser vigiada
para que não contenha dolo ou falsidade e para que seja sábia e proveitosa; e o
pensamento, que controla a ação e a linguagem e é revelado por elas, deve ser
cuidadosamente avaliado pelo jovem, e deve ser dirigido de acordo com as normas
da Escritura.
Ao sumarizar seu artigo sobre o Ensino de Zwínglio sobre a
Instrução Reformada, Faber (1999a, p. 118) enfatiza, além da única base
adequada, as Escrituras Sagradas, que
De acordo com Zuínglio, o objeto último
do ensino é “Cristo e este crucificado”. E como a mensagem do Evangelho é
encontrada somente na Bíblia, a Bíblia providenciaria o foco de toda instrução.
O aluno que busca a verdadeira sabedoria deve buscar o Senhor Jesus Cristo e
seu ensino. Para Zuínglio então, “educação” é algo mais amplo do que o estudo
acadêmico ou escolar. Além do avanço intelectual, a instrução reformada diz
respeito a inculcação das virtudes bíblicas de justiça, santidade e
autocontrole. Não somente a vida diante de Deus, mas também a conduta na
presença de outros deveria ser marcada por estas virtudes. Dedicando sua vida
inteira à glória de Deus e ao serviço de outros, o aluno reformado busca
aplicar a Palavra de Deus à sua vida. Claro, Zuínglio conclui, isto só pode ser
feito pela graça de Deus. Por esta razão ele termina o tratado com esta oração:
“que Deus possa conduzir-te através das coisas deste mundo de tal maneira, que
você nunca se separe dele”.
O grande reformador da Escócia, John Knox (1515-1572), além
de sacerdote e tutor de filhos de famílias nobres, destacou-se como notável
pregador. Com grande influência de Calvino, Knox foi o grande realizador dos
ideais educacionais de Calvino, e deu enorme impulso à educação popular,
“fazendo daquele Estado o mais importante de língua inglesa” (LUZURIAGA, 1987,
p. 112) através da implantação do sistema de Escola paroquial na Escócia
(MONROE, 1988, p.178).
O primeiro Livro de Disciplina para a Igreja escocesa (1560)
redigido por Knox apresenta propostas para um amplo sistema de escolas
controladas pela Igreja Reformada. Temos que: “Toda igreja deve ter um
mestre-escola que seja capaz de ensinar gramática e a língua latina; e no campo
o ministro deve cuidar das crianças para instruí-las nos primeiros rudimentos e
especialmente no catecismo” (LUZURIAGA, 1987, p. 112).
Seguindo a proposta de Calvino, a responsabilidade pela educação
religiosa dos jovens de cada paróquia era do pastor e demais oficiais desta.
Além disso, o plano educativo de Knox exigia o “ensino universal e compulsório
dentro de um sistema nacional unificado” (MONROE, 1988, p.178). Giles (1987, p.
127) comenta que por ser dispendioso, “o plano não foi universalmente aceito.
Todavia, onde foi aceito, representou um avanço real na História da Educação”.
A reforma escocesa atingiu indiretamente os EUA, porque muitos
presbiterianos escoceses emigraram primeiro para a Irlanda do Norte, no século
XVII, e de lá milhares foram para os EUA, na primeira metade do século XVIII.
Assim, o presbiterianismo norte-americano descende, diretamente, do
presbiterianismo escocês.
2.3 Contribuições da Reforma para a Educação de Seu Tempo
Desde antes da Reforma, já se falava sobre a necessidade de mudanças
na educação dentro de moldes cristãos. Assim, o desenvolvimento da educação
reformada não começou nem terminou com a obra dos primeiros reformadores. Antes
de Lutero, cristãos humanistas publicaram tratados promovendo a melhoria
educacional e o próprio Renascimento tinha como característica distintiva a
revalorização do aprendizado em bases cristãs. Os reformadores, tendo sido
educados no humanismo, estavam acostumados a discutir os problemas educacionais
e os princípios e métodos de aprendizagem, com o que foram forçados a
considerar o papel da educação para a vida do crente.
De toda forma, a Reforma consistiu num marco de avanço do processo
educacional na Europa no início da era moderna, cujos resultados estenderam-se
para muito além deste tempo e espaço localizados. Há que se considerar,
entretanto, juntamente com os avanços, as limitações da obra educacional dos
reformadores dentro do seu contexto histórico, para que possam ser
adequadamente compreendidas e avaliadas.
O Historiador da Educação Lorenzo Luzuriaga relaciona os avanços da
educação da Reforma dentro de seu contexto:
(...) que esta supunha a leitura da
Bíblia, e, portanto, a necessidade de ensinar todos a ler; daí seu interesse
pelo ensino popular. (...) A Reforma, igualmente, organiza a educação pública
não apenas no grau médio, ampliando a ação dos colégios humanistas da
renascença, mas também, e pela primeira vez, com a escola primária pública.
Finalmente, tem a Reforma caracteres próprios em cada país, acentuando o
caráter nacional da educação, e daí surgem diversos sistemas nacionais, ante a
universidade e homogeneidade da educação medieval. (1987, p. 108-9).
Na Alemanha, o resultado do esforço de Lutero, realizado na prática
por Melânchthon e outros colaboradores, foi a promoção da educação pública, com
maior desenvolvimento do Ensino Médio, a partir da criação de numerosos
colégios secundários, em substituição às escolas catedrais.
Quanto à natureza do ensino oferecido nas escolas reformadas,
destaca-se “o ensino na língua vernácula e, portanto, ensino de cunho nacional”
(LUZURIAGA, 1987, p 111) e a valorização dos clássicos gregos e do conteúdo
humanista (leitura, escrita, cálculo), sendo todos eles submetidos ao
escrutínio das Escrituras Sagradas, que passaram a ser lidas, estudadas,
explicadas, memorizadas, cantadas e eram apresentadas como a regra de fé e de
toda conduta também no âmbito educacional.
O caráter abrangente, para meninos e meninas, ricos e pobres, e a
freqüência obrigatória decretada pelo Estado constituem avanços notáveis da
pedagogia Luterana. Luzuriaga destaca os avanços de uma organização tríplice da
educação pública na Alemanha, cujo molde delineia os sistemas educacionais de
nosso tempo:
Ao terminar o século XVI, a educação
pública na Alemanha, isto é, nos múltiplos Estados que a compunham,
constituía-se, pelo menos nominalmente, desta forma: a) escolas primárias para
o povo, nas aldeias e pequenas localidades, com ensino muito elementar dado na
língua alemã, por eclesiásticos ou sacristãos, e com caráter principalmente
religioso; b) escolas secundárias ou latinas, para a burguesia, de caráter
humanista, mas também religioso, como preparação principalmente para os cargos
eclesiásticos e profissões liberais; c) escolas superiores e universidades já
existentes em toda parte, mas transformadas no espírito da religião reformada,
e outras, de nova criação dos príncipes protestantes. Essa organização tríplice
manteve-se pela história da educação até nosso tempo, mas com espírito e
métodos naturalmente diferentes.
(LUZURIAGA, 1987, p 111).
Foi especialmente marcante o progresso das Universidades a partir da
Reforma Alemã: Wittenberg, Marburgo, Konigsberg, Jena, Helmstadt, Dorpat,
Strasburgo e Altdorf estão entre as que foram criadas ou experimentaram
marcante desenvolvimento no tempo da Reforma. Embora as atividades em algumas
destas universidades tenham degenerado, no século XVII, num formalismo sem vida
(MONROE, 1988, p. 181), é sabido que o sistema alemão foi um dos mais
duradouros e que atravessou os séculos posteriores de decadência do ensino
universitário com maior sucesso.
A educação religiosa calvinista, por sua vez, levou ao
desenvolvimento de um sistema de educação elementar no idioma vernáculo para
todos, à criação das escolas secundárias, que formavam funcionários civis e
eclesiásticos, e ao êxito imediato da Academia, fundada por Calvino e orientada
por Teodoro de Beza, “atraindo alunos da França, Inglaterra, Holanda e Escócia,
países em que serve de modelo”. (MONROE, 1988, p. 181)
As idéias calvinistas se estenderam aos huguenotes na França, aos
Valões na Holanda e Bélgica, aos Puritanos na Inglaterra, aos Presbiterianos na
Escócia, chegando até às colônias inglesas na América. Giles detalha as
contribuições calvinistas em outros países:
(...) na França, os huguenotes fundam oito
universidades e trinta e dois colégios, além de inúmeras escoas elementares. Na
época elisabetana, a versão puritana do calvinismo domina Oxford e Cambridge.
As universidades de Leiden, Amsterdã, Utrecht e Groningen também seguem os
ensinamentos de Calvino. Abrem-se escolas elementares em Haia, Utrecht e
Drente, sob patrocínio público, para crianças de todas as classes sociais.
(1987, p. 126)
Na Inglaterra, a Reforma se deu por motivos religiosos e políticos e
de início, o povo em geral permaneceu indiferente a esse movimento. Com o
tempo, entretanto, a nova Igreja ganhou grande força e as medidas educacionais
realizadas pelos reis ingleses foram também bastante significativas.
A princípio, os mosteiros católicos foram fechados e as casas
religiosas foram transformadas em Igrejas colegiadas com uma escola anexa. Em
lugar das escolas catedrais, claustrais e monásticas, foram implantadas as
escolas reformadas. Na reforma inglesa,
Aceita-se o princípio conforme o qual a
educação é preocupação da Igreja e não das autoridades, mas a Igreja submete-se
à Coroa. A Inglaterra dedica-se à fundação de escolas de caridade, de
alfabetização, de aprendizagem profissional, e de instituições particulares sob
a direção de senhoras. Estas substituem as antigas escolas mantidas pela igreja
católica. (MONROE, 1988, p. 181).
Os Colégios de fundações ou Escolas Públicas (Public Schools) eram
para os filhos da burguesia e dos cavaleiros pobres. Os ricos eram educados por
preceptores e as classes mais baixas foram especialmente beneficiadas com a
promulgação da “lei para os pobres” de 1601, que ordenava “a arrecadação de
impostos compulsórios sobre a propriedade, com a finalidade de custear curso de
aprendizagem nas casas de trabalho para os pobres. Outra exigência da mesma lei
era que os seus filhos recebessem instrução religiosa, tornada obrigatória em
cada paróquia” (GILES, 1987, p. 127-8). Com esta lei, as autoridades passavam a
cuidar da educação das classes desfavorecidas.
Também na Inglaterra a Reforma esteve associada ao impulso e
desenvolvimento de universidades. Segundo Monroe, “Em Cambridge, onde se
centralizou a Reforma, o movimento começou no início do período, sob a
liderança de Tyndale (1484-1536) e Latimer (1485-1555)” (MONROE, 1988, p. 181)
e os mosteiros católicos de Oxford e Cambridge foram transformados em
importantes universidades orientadas pelo protestantismo.
Não se deve ignorar o fato de que, de início, a Reforma pareceu
significar um ataque à educação existente, e de fato, a educação medieval caiu
em declínio, a julgar pela diminuição do número de alunos nas universidades de
então, e pelo fechamento das escolas locais menores (NOLL, 1980, p. 103-104).
Embora este declínio fosse já uma tendência do materialismo do período, é certo
que alguns argumentos dos reformadores contra a educação medieval abalaram
ainda mais a confiança social e o próprio suporte financeiro das instituições
existentes. Esses argumentos são esboçados por Mark A. Noll em sua obra sobre
os Primeiros Protestantes e a Reforma da Educação:
(...) da parte dos reformadores, a
questão contra a educação medieval tinha a seguinte conotação: “A Igreja
Católica Romana perverteu o cristianismo e escureceu a luz do Evangelho. É esta
Igreja católica romana que comanda e patrocina a educação. A educação,
portanto, deve estar tão corrompida como sua patrocinadora. (1980, p. 102).
O segundo argumento anti-educacional da época não tinha teor
religioso e era mais ou menos o seguinte: “nunca houve tantas chances para
alguém se dar bem na vida. Ouro, prata e outras matérias primas provindas das
Américas estão enriquecendo a Europa. O comércio está em expansão. O que,
nestas circunstâncias, a educação pode significar para meus filhos? O que
desejo é ser rico ou ao menos me dar muito bem na vida, e para isso eu não
preciso freqüentar escolas” (NOLL, 1980, p. 102).
A propagação destas idéias e o conseqüente declínio da educação
católica no início da Reforma explica o comentário de alguns historiadores da
educação, como Manacorda (1989), que relata que: “a supressão das estruturas
eclesiásticas nem sempre levou à imediata instituição de escolas comunais
reformadas” e cita Erasmo: “Onde floresce o Luteranismo, as escolas definham”
(ERASMO apud. MANACORDA, 1989, p. 195).
Entretanto, esta decadência da educação católica medieval também
explica a urgência entre os reformadores no tratamento da questão da instrução
dos jovens e no suporte da educação através da implantação das escolas
reformadas nos diversos países em que a reforma floresceu.
Do ponto de vista da educação das mulheres, dos pobres, dos
trabalhadores, que não visavam o pastorado ou o governo civil, as medidas
educacionais tomadas pelos reformadores significaram avanços e limitações. As
limitações refletem a visão do século XVI, mas os avanços ocorreram porque:
(...) embora a reforma fosse um produto
do seu tempo, ela também estava cativa ao Evangelho. E porque manteve-se cativa
ao Evangelho ela permitiu a introdução de novas ênfases. Algumas dessas novas
ênfases iniciaram reformas que modernamente têm sido reconhecidas. Foi a
doutrina reformada do sacerdócio de todos os crentes que dirigiram a educação
para uma via democrática e liberalizante (...) Os reformadores também
sustentaram uma visão elevada das esferas da vida criadas por Deus, de modo que
nenhuma ocupação era desonrosa (...).
Essas ênfases do ensino reformado tiveram
dois efeitos principais. Primeiro, a educação de elite voltada aos ministros e
governantes foi estendida àqueles que nunca chegariam a ser ministros ou
magistrados. Em segundo lugar e mais radical, a educação passou a ser oferecida
àqueles que nunca viriam a pregar ou a governar (NOLL, 1980, p. 121-2).
Lutero defendia a necessidade da educação para que todos pudessem
ser bons cidadãos, para o governo apropriado dos negócios e do lar (no caso das
mulheres) e pelo simples prazer de estudar, de ler as mais diversas fontes, de
discutir idéias e, especialmente, para que todos tivessem acesso direto às
Sagradas Escrituras.
Com respeito às mulheres, podem não parecer tão significativas as
reformas educacionais realizadas, sob os padrões modernos, mas considerando a
situação das mulheres na época, elas representaram um grande avanço, os quais
podem ser vistos de três formas: o reconhecimento de que as mulheres cristãs,
possuindo todos os direitos e deveres de uma sacerdote (segundo a doutrina do
sacerdócio de todos os crentes) e filha de Deus, deviam aprender a ler e
estudar para serem mais úteis ao Reino de Deus; o estabelecimento de escolas
para meninas nas cidades e a importância do papel conferido às mulheres como
responsáveis e verdadeiras gerentes do lar, dos filhos e dos negócios da
família.
A relação entre a profundidade das medidas tomadas pelos
reformadores e o seu contexto, pode ser visualizada também no que tange aos
propósitos da educação e ao seu currículo.
Muitas das características da Reforma educacional foram
influenciadas pela Renascença, especialmente quanto aos métodos e objetivos da
educação. “Melânchthon chegou a usar dois “slogans” próprios da renascença
cristã como as chaves para sua reforma educacional: “o retorno às fontes” (aos
escritos originais gregos e latinos) e “o conhecimento de Cristo”. Embora
reconhecesse as diferenças existentes entre os reformadores e os eruditos
ligados à Igreja Católica como Erasmo, Lefreve, John Colet e Thomas More, ele
não desprezava sua contribuição intelectual.
Quanto ao objetivo da educação, embora pudesse ser resumido na fé em
Deus e no temor do Senhor, pela introdução maciça e dominante das Escrituras no
currículo, a busca desse objetivo principal levou ao alargamento dos objetivos
educacionais e do currículo. Segundo Noll:
Enquanto a reforma manteve as sete artes
liberais ensinadas na Idade Média, ela se voltou para novos campos que seu
próprio ensino tornou importante. Os reformadores também expressaram renovada
preocupação pelo desenvolvimento da piedade e do bom caráter geral, objetivos
educacionais raramente colocados com clareza na educação medieval. (1980, p.
124).
A progressão das fases dentro de um sistema educacional, a ênfase no
estudo das línguas, especialmente o Latim, o grego e o hebraico, além dos
idiomas vernáculos, a introdução da música no currículo, um novo olhar para o
mundo como criado por Deus, o clamor por uma mudança no fazer a ciência e a
preocupação com aspectos mais práticos da vida como a necessidade de unir o
estudo ao trabalho e lazer dos jovens e a um método de ensino baseado na
curiosidade natural das crianças e no prazer de estudar; todos esses fatos e
características da educação reformada podem ser considerados, mesmo dentro do
contexto do século XVI, avanços concretos para a História da Educação e para a
Construção de uma filosofia educacional reformada.
Por fim, cabe considerar ainda um aspecto político que envolve os
reformadores concernente ao papel do Estado na condução da Educação. Como
coloca o estudioso da Reforma Harold I. Grimm: “Lutero foi o primeiro educador
dos tempos modernos a tornar o Estado ciente de suas grandes obrigações para
com a sociedade e de suas abrangentes oportunidades no campo da educação”
(GRIMM apud NOLL, 1980, p. 128-9).
Essa questão é colocada por NOLL de um ponto de vista que evidencia
o caráter contraditório e, de certa forma, irônico, do desenvolvimento da
relação Igreja-Estado-Educação:
A parte irônica desse desenvolvimento é
que Lutero e os outros Reformadores chamaram o Estado para exercer as funções
religiosas que a Igreja Católica estava pervertendo. Mas a subseqüente educação
estatal, particularmente na América, tornou-se cada vez mais precavida – ou
mesmo hostil – à qualquer tipo de expressão religiosa formal (...).
Essa situação estranha pode ser explicada
historicamente. Os primeiros reformadores não tinham a noção que temos
atualmente da separação entre a Igreja e o Estado. Eles pensavam que um
governador piedoso deveria, e poderia, fazer muito para a promoção da Igreja e
de outros interesses cristãos (...). Eles não visionavam o pluralismo moderno,
onde uma grande variedade de crenças coexistem numa mesma sociedade.
(1980, p. 129).
Com razão, o período da Reforma tem sido referenciado pelos
historiadores ocidentais como a era na qual a educação pública e universal
iniciou. Mas essa posição sustentada pelos reformadores estava ligada à
necessidade de todos terem acesso ao conhecimento da Palavra de Deus e dependia
do compromisso do Estado com esse propósito que a educação medieval não
alcançara. Os reformadores não previam, contudo, que, mais tarde, os propósitos
da educação pública deixariam de ser religiosos e dariam lugar a propósitos
seculares.
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