Nota de Introdução:
Em
nossa busca por uma filosofia da educação reformada, temos visto que o nosso
ponto de partida não pode ser o pensamento secular (nem por meio de síntese,
nem tentando uma co-existência pacífica) [capítulo 5], mas que
devemos construir desde o princípio sobre fundamentos distintamente reformados,
dentre os quais destacamos os pressupostos sobre a bíblia, sobre a pessoa e as
obras de deus, e sobre os estados da pessoa humana como três eixos principais
que delineiam o nosso ideal educacional [capítulo 6]. No capítulo
anterior, investigamos o que a bíblia tem a dizer a respeito da própria
razão de ser da educação, e respondemos às perguntas básicas: "Por
que educar?" e "Para quê educar?" [ capítulo 7] .
Este capítulo prossegue tratando de um tema central à filosofia educacional, A Teoria do Conhecimento, buscando indicar soluções distintamente cristãs para questões debatidas como: "Qual é, e como podemos descobrir o verdadeiro sentido das coisas? Como professores e alunos cristãos devem lidar com a ciência e com o conhecimento humano acumulado na história? Existe uma lei que rege o conhecimento? De onde surge o conhecimento: ele é inato ou adquirido? E no que consiste o verdadeiro aprendizado?
Você pode ler um ítem de cada vez, com atenção, anotando novas descobertas e novas questões que o texto levanta, ou discuta as implicações desses pontos com um grupo. Boa leitura!
FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DE UMA EDUCAÇÃO BÍBLICO REFORMADA
CAPÍTULO 8
EPISTEMOLOGIA REFORMADA
A Teoria do Conhecimento Segundo a Bíblia
8.1 A
Revelação de Deus e a Responsabilidade Humana
Na concepção reformada, a criação possui
estrutura e sentido próprio por ser a própria revelação de Deus, juntamente com
a Bíblia. Ao contrário da epistemologia humanista, não é o homem quem dá
sentido ao mundo, à história, às ciências, etc, mas Deus já os criou com
sentido, sentido este que é explicitado na Bíblia, a revelação escrita de Deus.
A Bíblia é a chave para a descoberta do verdadeiro sentido das coisas. Quanto à
mensagem, a revelação de Deus na criação e na Bíblia são uma só e por isso a
epistemologia reformada parte do princípio de que a criação só pode ser
propriamente lida pelos homens (pecadores que tiveram sua razão e sentidos
corrompidos desde a queda), através das lentes corretoras da Bíblia. Esta é
precisamente uma aplicação de um princípio primordial da reforma na educação:
O que acabamos de
dizer não é nada mais que uma reafirmação do princípio da Reforma do Sola
Scriptura. A Escritura não é a única fonte de conhecimento e sabedoria. O
conhecimento é adquirido da criação que é repleta de sentido em todos os
lugares, mas a Escritura é a chave indispensável para a descoberta do sentido.
(FOWLER, 1982, p. 45).
Essa posição reformada parte do princípio de
que, como a criação é revelação, não é possível separar a criação da revelação
a fim de torná-la objeto de estudo científico, pretendendo a suposta
neutralidade religiosa defendida por secularistas. Ao contrário, a posição
reformada é a de que o significado e a estrutura da criação só podem ser
conhecidos em seu sentido mais completo à luz da revelação. Fowler interpreta
que é este o sentido mais profundo do verso bíblico: “o temor do Senhor é o
princípio do saber” (Provérbios 1:7):
O temor do Senhor,
e não algum tipo de análise teórica, é a porta para a sabedoria e o
conhecimento.
Ao afirmar isso não
estamos dogmatizando mais do que Monod dogmatiza quando ele afirma o princípio
da objetividade lógica como a chave para todo o conhecimento. Estamos
simplesmente articulando um princípio epistemológico fundamental que está de
acordo com a nossa base religiosa. Afirmamos claramente nossa rejeição a toda
idéia de que o sentido, em sua riqueza e profundidade, pode ser reduzido a um
sentido lógico, matemático ou moral. Insistimos que, em sua profundidade, o
sentido é de natureza religiosa, revelando-se a nós na raiz religiosa de nossa
existência. (1982, p. 46, 47).
A Bíblia, ou a lei de Deus, portanto, é de
fundamental importância e necessidade para o conhecimento e por isso deve-se
considerar a sua natureza, papel e extensão. A Bíblia afirma que Deus é o
Criador e o Legislador do Universo. É de se esperar, portanto, que a Lei por
Ele criada não se restrinja ao âmbito da fé e da moral, mas abranja e governe
tudo, cada centímetro do universo, e muito embora não encontremos na Lei de
Deus os detalhes especificando como os movimentos de rotação elíptica dos
planetas, a Bíblia apresenta os princípios fundamentais que regem o cosmos.
O princípio básico afirmado pela Bíblia, é
que o cosmos subsiste em Cristo, que é a Palavra de Deus. A Bíblia afirma que o
mundo foi criado e subsiste pela Palavra ou pelo Logos divino: “pois, nele,
foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as
invisíveis (...) Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas
as coisas. Nele, tudo subsiste.” (A BÍBLIA..., Colossenses 1:16,17) e em Atos
17: v. 24, 25, 28:
O Deus que fez o
mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita
em santuários feitos por mãos humanas, nem é servido por mãos humanas, como se
de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e
tudo o mais; (...) Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos (...).
Esses textos bíblicos ensinam que todas as
coisas encontram sua subsistência, coerência, unidade, sustento e sentido na
pessoa de Jesus Cristo. Isso significa que o homem não pode dar coerência ou
subsistência ao universo pela sua livre ação, tampouco que ele pode romper a
unidade que a criação apresenta em Cristo, o qual reina sobre toda a criação
como o seu Mantenedor e Redentor através de sua palavra.
E este é precisamente o significado de Lei:
“A Palavra de Deus, que sustenta a criação, é revelada ao homem, na revelação
integral da Escritura e da Criação, como Lei” (FOWLER, 1982,
p. 48).
O que isso revela sobre o papel do homem? Ele
não é um passivo observador do sentido da criação; tampouco é o homem quem dá
sentido a criação. Na concepção reformada, o homem é aquele que descobre o
sentido da criação através de sua ação responsável, ordenada por Deus desde a
criação da raça humana. Desde Gênesis, o homem foi colocado no jardim do Éden
para dominar e para governar a criação, segundo os princípios maiores
estabelecidos por Deus.
Fowler distingue na Lei de Deus o que chama
de ordenanças determinativas e ordenaças normativas. As primeiras constituem as
leis divinas que regem e dão estrutura ao Universo à parte do homem e de sua
ação, como é o caso da denominada Lei da Gravidade. Já as ordenanças normativas
“fornecem os princípios normativos para a atividade formativa do homem como
descobridor do sentido da criação” (FOWLER, 1982, p.48). Essas
ordenanças declaram o que deve ser ao invés de determinar o modo como as coisas
são.
O homem é, portanto, um governante
responsável da criação. Ele não é determinista ou fixo em sua ação, tampouco é
autônomo, podendo agir como se não houvesse lei a que prestar contas.
Diferentemente dessas duas posições extremas, a Bíblia ensina que o homem, ao
governar sobre a criação, é livre para agir somente de acordo com essas
ordenanças reveladas por Deus. O homem forma normas, sim, adequadas a cada
contexto e época histórica, por exemplo, sobre a exploração dos recursos
naturais, como a madeira. Entretanto, essa norma positiva que ele deve
estabelecer deve estar de acordo com os princípios normativos dados por Deus.
Um destes princípios aplicáveis ao caso é que a criação foi feita para o homem
e não o homem para a criação. A madeira foi feita para o homem, e não o homem
para a madeira e, portanto, é perfeitamente correto, segundo a Bíblia, que o
homem usufrua da criação para suprir as suas necessidades. Este princípio do
usufruto é balizado por outro princípio bíblico da moderação na atividade
humana, na preservação do mundo que Deus criou. Quando a exploração da madeira
descamba para uma atividade que põe em risco a sobrevivência de certas espécies
da fauna e da flora, ela passa a contrariar esta norma divina. Em tudo isso, o
homem não deixa de ser um governante responsável em sua atividade e
responsabilidade de fazer leis, embora não seja autônomo.
Essas ordenanças normativas, encontradas na Bíblia em forma de
princípios sobre como as coisas devem ser, abarcam a esfera moral tanto quanto
a esfera ambiental cujo exemplo estivemos considerando, tanto quanto a esfera
econômica, jurídica, estética, social, política, e assim por diante. Fowler
enfatiza que os cristãos parecem ter uma tendência de reduzir as ordenanças
normativas à esfera moral, degenerando em um código moral sobre como se deve
vestir, falar, etc. Fazer isso traz graves conseqüências educacionais, visto
que “reduzir a função normativa da Palavra de Deus a uma norma moral é remover
a maior parte da atividade humana da autoridade da Palavra de Deus e assim
dirigir a vida humana para dentro do abismo do subjetivismo”. (1982, p. 49)
8.2
Implicações Educacionais
Quais são as principais
implicações educacionais do reconhecimento dessas ordenanças divinas e do papel
do homem como descobridor do sentido da criação? Uma delas diz respeito à
posição do reformado para com a ciência. Por um lado, o pensador reformado não
pode ser anti-científico. A interação do homem com a criação e o estudo desta
pelo homem, quer seja ele crente ou não, produz um tipo de conhecimento
fundamentado em experiências, o qual constitui uma análise válida, embora nem
sempre produza conclusões verdadeiras. Mas a produção científica faz parte da
responsabilidade de um homem cujo papel é o de desvendar o sentido da criação.
Por outro lado, em vista de que a ciência é
uma atividade humana e como tal é falível, a ciência não pode ser absolutizada
como o único tipo de conhecimento válido. Como deixa claro Fowler:
A Palavra de Deus,
não a análise científica detém a chave para o conhecimento, a qual é adquirida
através de todas as mais variadas atividades da vida. A educação cristã,
portanto, deve recusar-se a transformar a ciência, ou formulações científicas
particulares, em uma lei à qual o homem deva submeter a sua vida. Não há
lei para a criação que não seja a lei da Palavra de Deus. (1982, p. 50)
Assim, embora se reconheça a validade da
experiência para a tarefa educacional, deve-se reconhecer, entretanto, que não
se pode extrair sentido diretamente das experiências, mas o sentido delas
depende de sua subsistência em Cristo.
Fowler, a propósito do ato educativo, sugere
que, sendo a educação uma das áreas da vida sobre a qual o homem exerce a sua
atividade formativa como governador da criação, educar envolve exercer poder
formativo do professor sobre o aluno. Esta referencia a “poder” não significa
que o professor seja um sujeito autônomo que inventa leis e as aplica no ato
educativo segundo sua vontade. Muito pelo contrário, o professor não é
autônomo, mas é responsável também no ato educativo para com os princípios
normativos fornecidos pela Palavra de Deus concernentes à educação.
A obediência do professor ao ensino da
Palavra determinará seus atos e concepções educacionais, como por exemplo, a
visão que ele tem do educando. As normas bíblicas sobre quem é a criança são
claras na Bíblia, e abrangem a sua criação à imagem de Deus, a sua natureza
corrompida e a possibilidade de regeneração e restauração da imagem de Deus
grandemente perdida na queda. Assim, o professor não verá a criança como um ser
que tem a capacidade de dar sentido a sua existência, tampouco tendo o papel
passivo de receptora de um conjunto de conhecimentos do passado que são
considerados verdades inquestionáveis. A criança também é sujeito e deve
aprender a descobrir o sentido existente na criação divina como centrado em
Cristo.
E quanto àquele conjunto de conhecimento
acumulado pelas gerações passadas? Enquanto os defensores da pedagogia
progressiva tendem a despreza-lo, e os tradicionalistas o elevam à posição de
verdade absoluta, a resposta reformada é que esse conjunto de conhecimentos
deve ser ensinado à criança no ato educacional, não como verdade absoluta, mas
como respostas humanas à revelação divina, algumas adequadas à Lei de Deus, e
portanto, verdadeiras, outras que revelam mal-aplicação das ordenanças divinas,
sendo, portanto, falsas. Esse conhecimento, entretanto, devidamente estudado e
analisado, servirá de ferramenta para auxiliar a criança no seu desvendar do
sentido da criação.
A criança deve ser estimulada e auxiliada na
sua responsabilidade de julgar e questionar a veracidade do conhecimento
recebido de acordo com os princípios normativos divinos, de forma que o
conhecimento acumulado pela humanidade passa a ser ferramenta para testar
criticamente a sua veracidade e relevância. Esse julgamento e esse teste deve
ser feito com base na Palavra de Deus.
Fowler acrescenta a importância do teste da
relevância. Todo conhecimento adquirido pela criança deve ser testado em termos
de veracidade e relevância, e essa relevância diz respeito à sua importância e
validade para os diferentes e mutáveis contextos, espaços e tempos:
Toda formulação
humana, deve-se lembrar, é uma aplicação que visa adequar-se a uma situação
particular de modo que, em um mundo mutável, uma formulação que foi válida no
passado pode não mais ser válida para a situação presente. Devemos sempre
considerar a possibilidade de uma nova situação estar exigindo uma nova
aplicação/especificação da lei normativa já estabelecida. (FOWLER, 1982., p. 52)
8.3
A Lei do Conhecimento
“Na atividade humana do conhecer, estão envolvidos três fatores: o
conhecedor, o conhecível e a lei que governa tanto o conhecedor como o
conhecível na situação de aprendizado” (FOWLER, 1982, p. 58). O postulado de Fowler parte do princípio de
que só há aprendizado quando os dois elementos essenciais, o conhecedor e o
conhecível, são feitos compatíveis através de uma lei que os governa, que
garante que aquilo que se deseja conhecer realmente existe e pode ser
conhecido, e que há um certo ordenamento e constância no mundo em que vivemos:
“Aquele tipo de mudanças que imaginamos nos mundos fantásticos que inventamos
não ocorrem em nosso mundo apenas porque o conhecedor e o conhecível estão
relacionados um ao outro por algum tipo de lei que garante sua constância em
relação um ao outro” (FOWLER, 1982, p.59).
Embora todos concordem em que há uma lei que
governa o conhecimento, relacionando o conhecedor e o conhecível, as pessoas
têm várias idéias do que seja essa lei, de sua natureza. No mundo ocidental
predomina o pensamento que essa lei do conhecimento está localizada dentro do
homem, do conhecedor. Seria a faculdade racional do homem operando através de
certos métodos considerados científicos, que se forem rigorosamente aplicados,
garantiriam a validade do conhecimento adquirido. Porque a validade do
conhecimento tem sido colocada na mente humana e nos métodos científicos a
ciência tem recebido grande aval no mundo científico dos últimos séculos.
Uma outra concepção, mais recente, sobre essa
lei, é que ela “reside dentro da pessoa livre, a qual não está sujeita a
nenhuma lei, nem mesmo a uma lei dentro de si mesma, mas que livremente faz a
lei” (FOWLER, 1982, p. 59). Como a pessoa é livre para fazer a
lei, o que ela sabe é simplesmente a sua maneira de ver as coisas. Não existe
verdadeiro ou falso, pois as coisas não são vistas pelo que elas são. Elas só
podem ser verdadeiras ou falsas para o conhecedor. Essa posição chamada de
relativista também é muito forte no mundo pós-moderno atual, podendo ser
percebida no meio educacional quando se afirma que há diversas opiniões ou
pontos de vista sobre uma dada questão, igualmente válidos, e que não se deve
impor um ponto de vista sobre o outro ou sugerir que apenas um seja verdadeiro.
Essas duas visões da lei do conhecimento
podem ser percebidas no estudo de um assunto tão básico como o alfabeto e a
formação das palavras. Temos duas situações: um professor mais tradicional,
adepto da primeira concepção de lei, e que enfatiza a aplicação rigorosa da
razão e do método científico, e um professor mais aberto e adepto do livre
conhecimento. O primeiro iniciará a alfabetização mostrando para os alunos o
alfabeto completo e exporá o assunto sistematicamente, através de um método
rigoroso e de uma ordem necessária, que passa pelo estudo das vogais, o estudo
das consoantes, a formação das sílabas, das mais fáceis às mais difíceis, para
depois iniciar a junção das sílabas para a formação das palavras. Haverá uma
ênfase na perfeição da escrita e no seguir da ordem proposta para que haja
verdadeiro aprendizado.
O segundo professor iniciaria a aula
conversando com os alunos, pedindo para que se expressassem, e eles mesmos
livremente escolheriam um tema sobre o que conversariam. Os alunos livremente
poderiam escolher uma palavra como “amor” e a partir daí, cada um iria dizer o
que pensa sobre o amor, e nessa conversa surgiriam mais palavras relacionadas
ao tema. Somente a partir dessa discussão e da união dos pontos de vista, o
professor perguntaria aos alunos: Que letras vocês acham que é essa primeira
letra da palavra Amor. Um diria M, outro diria O, outro diria A. O professor, sem
ofender ou negar cada opinião iria, de alguma forma, levar os alunos a concluir
que a letra A é a correta, e após ter feito isso com cada letra, o aluno
ficaria livre para formar outras palavras a partir dessas letras da palavra
amor, devendo ser aceitas todas as palavras que os alunos disserem, as
existentes e as que não existem no nosso vocabulário, e assim por diante.
Fowler afirma que no cotidiano escolar, o que
predomina não é uma ou outra concepção da lei do conhecimento seguida à risca,
mas uma mistura das duas, feita por professores e pedagogos que não percebem
como as duas visões são inconciliáveis. Os testes que aplicam à sua teoria do
conhecimento são o teste da utilidade prática, o teste do “sucesso”, ou
baseiam-se no fato de esta ou aquela visão estar em voga e ser adotada pela
maioria, ou porque essa é a visão defendida por este ou aquele educador
considerado um “expert” no assunto. Entre educadores cristãos, é comum
escolherem uma ou outra teoria por um sentimento intuitivo de que uma delas é mais
compatível com a fé cristã.
Qual o problema com essas visões, e porque o
educador cristão não pode adotá-las? Ambas colocam a lei do conhecimento dentro
do conhecedor humano, concebido como um ser autônomo e a medida para julgar a
validade do seu conhecimento, e
(...) à luz da fé
cristã deveríamos julgar essa pressuposição de que a lei para o conhecimento
reside no conhecedor humano como uma mentira. A verdadeira educação não pode
ser construída pela mistura de duas ou mais variedades de falsificações. Ela só
pode ser construída na verdade após termos decisivamente rejeitado a mentira da
autonomia humana em qualquer área do conhecimento”. (FOWLER, 1982, p. 62).
O educador reformado deve basear sua lei do
conhecimento não na autonomia do conhecedor, nem na mente aberta, visto que
reconhece que sua mente é corrompida pelo pecado a tal ponto que o seu coração
é enganoso e difícil de ser conhecido (Bíblia Sagrada, 1993, Jeremias 17:9).
Por isso ele adota como a norma autoritativa de toda a sua vida o ensino da
Palavra de Deus. Na concepção reformada, portanto, a norma que governa o
conhecimento é a Palavra de Deus:
(...) é a lei da
Palavra de Deus, os estatutos, as ordenanças, os decretos que Deus estabelece
para a sua criação aos quais todas as criaturas, conhecedor e conhecível, estão
sujeitas. A lei não é o princípio inerente ao conhecedor, nem está em qualquer
outro lugar na criação, mas é o mandamento dado por Deus à sua criação”
(FOWLER, 1982, p. 63)
O caráter da lei de Deus que governa o
conhecimento humano é normativo, visto que ela estabelece como o homem deve
agir na situação de aprendizado. Como uma lei normativa, a Palavra de Deus pode
ser desobedecida, e a validade do conhecimento obtido dependerá da fidelidade e
da obediência do homem à lei divina. “Na medida em que o homem obedece à
Palavra em sua atividade de conhecer, ele conhecerá verdadeiramente. Na medida
em que ele a desobedece, ele falsifica o conhecimento” (FOWLER, 1982, p. 64).
Fowler prossegue em sua argumentação
demonstrando a natureza religiosa das normas cognitivas. Ele afirma que são as
normas adotadas por cada ser humano que determinam os fatos. Não são os fatos
que determinam qual a norma correta. Cada fato é um produto do ato de aprender
baseado em normas.
Imagine-se a seguinte situação: dois professores, um ateu e
um reformado, por exemplo, discutem a reforma protestante. O professor que se
diz “ateu” poderia dizer que a causa da reforma protestante foi essencialmente
econômica e política. Um professor reformado diria que a mesma reforma foi uma
obra de origem divina, em que o Deus Todo-Poderoso usou homens e circunstâncias
para reavivar sua Igreja e resgatar o ensino aberto e livre da Palavra de Deus
a todos. Não haverá jamais um ponto na discussão em que os professores em questão
chegarão a um acordo. Porque o problema não está com o fato. O problema é que
as normas que determinam os fatos são diferentes e incompatíveis. O professor
ateu tem como norma o pressuposto religioso que Deus não existe como revelado
na Bíblia e que Ele não intervém na história humana, convertendo corações,
transformando vidas, agindo diretamente na história da Igreja de maneira
sobrenatural pela atuação do seu Espírito Santo. A norma que governa o
professor reformado, sendo a norma bíblica, parte do pressuposto de que Deus é
soberano sobre a História humana e que escolhe e capacita homens para fazer a
Sua vontade e leva em conta a obra sobrenatural divina na conversão e nas ações
humanas.
A partir desse exemplo, espera-se ter deixado
mais claro que o mundo não é um conjunto de fatos inalterados pelas normas
cognitivas, e a educação reformada deve se desvencilhar dessa ilusão e “precisa
estar criticamente consciente de que todo fato de nosso conhecimento é
determinado pelas normas que adotamos em nosso ato de conhecer” (FOWLER, 1982,
p. 66).
O ponto fundamental defendido pelo autor é
que “o conhecimento autêntico depende da adoção de normas autênticas”, Para o
crente, a sua cosmovisão baseia-se na existência de verdades absolutas,
contradizendo, assim, a visão de mundo pós-moderna. A sua norma cognitiva leva
em conta essa existência, e o clamor é, utilizando o exemplo citado: ou existe
um Deus que age soberana e naturalmente na história ou esse Deus não existe.
Uma dessas pressuposições (de natureza sempre religiosa, em última instância)
precisa ser verdadeira e a outra falsa. O compromisso religioso do crente
reformado com a Palavra de Deus o levará a dizer que a norma autêntica é a que
leva em conta a existência do Deus da Bíblia, e somente essa norma o levará a
um conhecimento verdadeiro da história.
É preciso levantar-se ainda uma questão. Se o
conhecimento produzido pelo mundo que não crê nos pressupostos bíblicos não se
baseia nas normas da Palavra de Deus, e, portanto, está sujeito a falsidade,
não se correria o risco de haver um eterno impasse entre o crente e o
incrédulo, de modo que estes jamais poderiam concordar em coisa alguma? Como o
crente reformado deve lidar com o conhecimento produzido pelo mundo incrédulo?
Deve rejeitá-lo por completo? A resposta de Fowler é elucidativa e dispensa
maiores explicações:
Isso não exige que
nós rejeitemos toda a obra educacional daqueles que não reconhecem que a
Palavra de Deus é a lei para o nosso conhecimento. Porque a Palavra é a lei de
toda a criação, e quer a criatura a reconheça ou não, todo conhecimento humano
acontece tendo aquela Palavra como lei. Porque isso continua sendo verdadeiro
mesmo quando o conhecimento ocorre sob a influência distorcida de princípios
religiosos falsos, esse conhecer não perde o contato com a realidade. O
princípio religioso falso distorce o ato de conhecer, mas não pode separar
totalmente o conhecedor do conhecimento.
Por essa razão,
todos, independentemente do seu compromisso religioso, podem contribuir para o
nosso conhecimento do cosmos. O que se requer de nós não é a rejeição da
contribuição daqueles com um compromisso religioso diferente, mas sim uma
avaliação e uma constante e profunda análise crítica dos resultados de todo
conhecimento humano com a visão de corrigir os efeitos distorcidos dos
princípios religiosos falsos.” (1982, p. 67).
É por esse motivo que os puritanos clamavam
que “a verdade, onde quer que a encontremos, é nossa” e é por isso que o
educador reformado não nega a validade de toda e qualquer produção científica,
cultural, educativa, etc., mas insiste em que todo conhecimento produzido deve
ser submetido ao escrutínio ou julgamento da Palavra de Deus, e avaliado a
partir das normas por ela fornecidas, a fim de estabelecer ou não sua
veracidade e relevância. O que ele deve fazer é investigar profundamente quais
as normas que regem as teorias educacionais vigentes, e à luz do ensino
bíblico, averiguarmos quais delas são verdadeiras e válidas e quais são falsas.
Nesse sentido, “faz-se necessário uma reforma sistemática de nossas normas
cognitivas sob cujas bases podemos remodelar nossa prática educacional do
início ao fim”. (FOWLER, 1982, p.69)
8.4 Conhecimento: inato ou experiência?
Ainda uma outra discussão
relacionada à teoria do conhecimento reformado. Aqui a divergência maior é
entre os empiristas e os inatistas ou intelectualistas, quando buscam responder
a questão: de onde surge o conhecimento, é inato ou adquirido pelos sentidos?
Os empiristas defendem que todo o
conhecimento é adquirido pelos sentidos e que o homem é um vazio, até que passe
a conhecer o mundo através da sua experiência. Os inatistas afirmam que o
conhecimento é inato ao ser humano e só precisa ser desenvolvido, estimulado,
trazido à tona. Tome-se a definição clássica utilizada por Marilena Chauí
(2001, p. 69):
O inatismo afirma
que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os princípios racionais, mas
também algumas idéias verdadeiras, que, por isso, são idéias inatas. O
empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios, seus
procedimentos e suas idéias, é adquirida por nós através da experiência. Em
grego, experiência se diz: empeiria – donde, empirismo, conhecimento
empírico, isto é, conhecimento adquirido por meio da experiência.
No decorrer da história da
filosofia, ambas as teorias foram achadas com problemas e outras soluções foram
buscadas, de modo que novas teorias do conhecimento foram surgindo, com Leibniz
no século XVII e sua distinção entre as verdades de razão e as verdades de
fato; com Kant no século XVIII em sua “revolução copernicana” que coloca a
razão no centro das atenções; e com a razão histórica de Hegel, no século XIX.
A posição reformada é formulada a
partir do que a Bíblia revela sobre o assunto da origem do conhecimento,
evitando os extremos. A Bíblia afirma que o homem não nasce vazio, muito menos
neutro, nem espiritualmente, nem moralmente, nem cognitivamente, nem
fisiologicamente.
Fisiologicamente, a criança nasce
com instintos. Ninguém a ensina a mamar, mas ela nasce com esse instinto, dado
por Deus em sua graça comum não somente aos seres humanos, mas também aos
animais, para que possam sobreviver.
Moralmente, a Bíblia afirma que
todo homem recebeu de Deus, desde o seu nascimento, uma consciência moral,
entendida como a lei de Deus gravada no coração dos homens, destinada a dar ao
homem noções de certo e de errado, de bom e de mau, do que agrada ou não agrada
a Deus.
Espiritualmente, o homem não
nasce vazio, mas nasce com um senso de Deus, da existência de um Criador, de um
ser superior a quem deve adorar, prestar contas e do qual necessita, de maneira
que só se satisfaz se vier a alcançar a comunhão com Deus, ou ficará sempre com
um vazio na alma. Além disso, a Bíblia afirma que o homem, longe de ser
espiritualmente neutro, nasce com a natureza corrompida e inclinada para todo
tipo de mal. Diz também em Mateus 15:18 que “o que sai da boca procede do
coração; e é isso o que contamina o homem” e Marcos 7:21 fornece a
explicação: “pois é do interior, do coração dos homens, que procedem os maus
pensamentos, as prostituições, os furtos, os homicídios, os adultérios
(...)”.
E cognitivamente? Seria possível
que só nessa instância o homem teria sido criado um vazio, uma página em
branco? Ou será que a criança já possui a semente de todos os conhecimentos, precisando
apenas ser encorajada por um bom professor-estimulador ou facilitador da
aprendizagem?
O ensino bíblico nega ambos os
extremos. Nem a criança tem a mente em branco, nem é autônoma no seu conhecer,
de maneira que possa ser deixada só. Gordon Clark refuta o empirismo com a sua
mente em branco argumentando que “desde que Deus é um Deus de conhecimento,
eternamente onisciente, como poderia um ser de quem se declara ser a sua imagem
e semelhança ser uma mente em branco?” (2000, p. 155). O próprio entendimento
por parte de Adão e Eva dos mandamentos dados por Deus implicava em que e eles
deveriam ter alguma inteligência inata para entender o mandamento. Embora o
mandamento em si não fosse um conhecimento a priori, o equipamento
intelectual para entende-lo era. Assim, “a sensação no máximo pode dar alguma
informação factual, mas embora isso seja o conhecimento do que é, o empirismo
nunca pode produzir o conhecimento do que deve ser” (2000, p. 155).
A criança é um ser criado à
imagem de Deus, e como tal, possui uma razão equipada com capacidades,
habilidades e possibilidades inimagináveis. A Bíblia afirma ainda que Deus
confere dons às pessoas, com os quais todos nascem. E de fato os dons naturais
podem ser percebidos nas crianças desde sua mais tenra idade. A criança mal
começa a falar e já se demonstra uma criança esperta, com facilidade de
expressão e de comunicação. Outra pode ter dons mais voltados para a solução de
problemas mais lógicos que se revelam na rapidez com que o bebê inventa
estratégias para subir na cadeira e pegar a mamadeira.
Ora, se toda criança nasce com
dons e enormes possibilidades como criatura feita à imagem do Criador, então
essas capacidades e possibilidades intelectuais devem ser exploradas,
desenvolvidas e encorajadas no ensino cristão. Deve-se rejeitar um ensino que
desconsidere as aptidões naturais e as habilidades diversas das crianças e que
as concebam como um mero depositório de conhecimentos. As crianças são
criativas, inteligentes e equipadas por Deus com os princípios que a levam a
controlar e a dominar a criação.
Contudo, a criança não é
autônoma, tampouco possui o conhecimento de todas as verdades. As verdades da
Palavra de Deus e da criação são externas à criança. Por isso a Bíblia fala
tanto sobre pregar, ensinar, transmitir o conhecimento, a verdade. Por isso o
Antigo Testamento enfatiza o ensino no temor do Senhor, a necessidade de se
adquirir a sabedoria e comprar o conhecimento. Os Provérbios de Salomão são
endereçados aos jovens, com o seguinte propósito:
(...) para obter o
ensino do bom proceder, a justiça, o juízo e a equidade; para dar aos simples
prudência e aos jovens, bom siso. Ouça o sábio e cresça em prudência e o
instruído adquira habilidade (Provérbios 1:2-5).
Se clamares por
inteligência, e por entendimento alçares a voz, se buscares a sabedoria como a
prata e como a tesouros escondidos a procurares, então entenderás o temor do
Senhor e acharás o conhecimento de Deus. Porque o Senhor dá a sabedoria, e da
sua boca vem a inteligência e o entendimento (...) Porquanto a sabedoria
entrará no teu coração e o conhecimento será agradável à tua alma. (Provérbios
2:3-6, 10)
Feliz o homem que
acha a sabedoria, e o homem que adquire conhecimento. (Provérbios 3:13.
Esses versos indicam claramente que o
conhecimento da verdade e a sabedoria não estão dentro dos homens, mas devem
ser buscados com esforço e diligência em Deus. Por isso a importância dada ao registro das
informações e das experiências da história para as gerações posteriores.
A criança precisa de correção e
de ensino. A correção é um aspecto mais negativo, que aponta para a necessidade
de dizer “não” à vontade da criança. A criança tem desejos, atitudes,
sentimentos, e conhecimentos inatos que são contrários à Palavra de Deus e que
precisam ser cortados, punidos, extinguidos pela disciplina bíblica. Provérbios
22:15 afirma que “a estultícia está ligada ao coração da criança, mas a vara da
disciplina a afastará dela.”
Já o ensino é o lado positivo da
educação bíblica. Compreende a instrução na verdade. Ensinar significa
transmitir às crianças, de maneira direta, pela fala, ou de maneira indireta,
como pelo exemplo, a verdade. E verdade entendida do sentido mais amplo
possível. Inclui a verdade sobre Deus, sobre o homem e sua natureza, sobre a
natureza, a verdade sobre os animais, sobre as plantas e sobre os planetas. A
verdade sobre os procedimentos matemáticos. A verdade sobre os fenômenos
físicos e químicos. A verdade sobre as línguas e seu aprendizado, a verdade
sobre as relações entre os homens, a verdade sobre a ação correta dos
sentimentos, a verdade sobre o que é necessário para preparar um pão gostoso e
macio, a verdade sobre como administrar uma empresa de maneira apropriada. A fé
reformada lida com absolutos, lida com verdades, e o ensino reformado consiste
na partilha dessas verdades a outros.
O aprendizado cristão, por outro
lado, consiste no adquirir essas verdades, apreender e entender as instruções
que são o conteúdo da educação. Essa apreender das verdades não se limita ao
conhecimento intelectual, mas necessariamente pressupõe a transformação do
viver como conseqüência do que foi aprendido. Aprender significa entender e pôr
em prática. O
aprendizado verdadeiro muda a vida. Essa é a concepção do ensino e da
aprendizagem cristã, conforme lemos na Bíblia em versos como os que seguem:
O que também
aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai; e o Deus
de paz será convosco. (Filipenses 4:9).
Pois não são justos
diante de Deus os que só ouvem a lei; mas serão justificados os que praticam a
lei. (Romanos 2:13).
Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e
as pratica será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a
rocha (...) E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será
comparado a um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia. (Mateus
7:24, 26).
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