“Maçãs
de Ouro” e a Visão Cristã da Comunicação e da Linguagem
“Eu estou persuadido de que sem o conhecimento da
literatura, a teologia pura não pode se manter... Certamente é meu desejo que
haja tantos poetas e retóricos quanto for possível, pois eu vejo que é por
estes estudos, e por nenhum outro meio, que as pessoas são excelentemente preparadas
para a compreensão da verdade sagrada, e para utilizá-la de modo habilidoso e
feliz.” (Martinho Lutero, carta a Eoban Hess)
Imagino que algum leitor desavisado pode estar se
perguntando a razão do título deste blog, especificamente desta sessão que se
concentrará na natureza do dom da Linguagem. Para esclarecer um pouco o tema,
iniciarei esta postagem dando uma breve explicação sobre a figura de linguagem
que representa o tema que aqui se introduz.
A expressão "Maçãs de Ouro", que encontramos
no Livro de Provérbios, é uma bela figura utilizada pelo sábio Rei Salomão para
ilustrar o bom uso da linguagem (Pv. 25:11). Esta imagem pode se referir ou a maçãs feitas
(ou cobertas) de ouro, ou a maçãs reais que possuem uma aparência tão perfeita
que podem ser descritas como "maçãs de ouro", ou a um padrão que era
utilizado em joias, semelhante ao modelo de "romã" que vemos descrito
em outras passagens das escrituras. De qualquer modo, assim como mal podemos
conceber a beleza, a raridade e a preciosidade de tais joias ou de maçãs feitas
de ouro, cuidadosa e artisticamente arranjadas em travessas de prata, assim
também é a beleza da palavra certa proferida no momento e no contexto devido.
Esta ilustração representa, portanto, o discurso piedoso, amoroso e apropriado,
o qual, desde aquela época e até hoje, é raro e precioso. Nosso desejo, como
cristãos, é que este discurso possa abundar cada dia mais em nossos próprios
lábios e nos lábios daqueles que nos cercam, sejam eles familiares, amigos,
filhos, alunos, etc.
Visto que esse blog é
voltado àqueles que se interessam pela área de educação e linguagem,
direcionarei o meu foco agora para o ensino de língua, seja ele realizado de
forma formal, na educação curricular escolar, seja ele realizado no dia a dia
das famílias cristãs preocupadas com a instrução de seus filhos nessa área do
conhecimento tão fundamental e essencial a uma educação genuinamente cristã. Para
isso, é importante que consideremos certas questões referentes ao
tema da linguagem, literatura e ensino de língua, a fim de compreendermos o
valor e o poder da Palavra (seja ela lida, escrita, ouvida ou falada) na
instrução geral de nossos filhos e alunos e a fim de compreendermos também como o
desenvolvimento efetivo das suas habilidades comunicativas ajuda a equipá-los
não apenas para atingirem e cumprirem as exigências práticas e vocacionais da
vida, mas também para que eles possam glorificar a Deus com a sua língua e ajudar
a difundir a mensagem do evangelho.
Contudo, tendo em mente que
toda a nossa concepção de ensino deve basear-se em uma cosmovisão fundamentada
e coerente com os ensinos bíblicos, antes de focalizarmos de modo mais prático a questão do ensino de língua e literatura, é necessário que consideremos
alguns dos principais pressupostos que caracterizam a visão cristã sobre a comunicação e a linguagem e as implicações
diretas dessa visão ao ensino de língua. Aqui se inicia, portanto, uma série
de postagens que focalizarão o tema geral da perspectiva cristã relacionada à
linguagem e ao ensino de língua. Esta série será extraída (com algumas
modificações e acréscimos) do último capítulo de minha dissertação de TCC na
Universidade Federal do Pará, defendida no ano de 2009, e intitulada: O ENSINO
DE LÍNGUA MATERNA NA ESCOLA CRISTÃ: TEORIAS, PRINCÍPIOS E PROPÓSITOS.
A Visão Cristã da Comunicação
Segundo a visão
bíblica, a comunicação, assim como todos os dons que podem ser encontrados no
homem, tem a sua origem em Deus e foi concedida a ele desde a sua criação.
Assim, quando Deus formou o homem à Sua própria imagem (Cf. Gên. 1:27), ele o
dotou da capacidade de comunicação por meio da língua, a qual pode ser
considerada, ao mesmo tempo, como um pré-requisito ou como uma consequência do
pensamento racional (debate este que não cabe considerar neste espaço). O
relato da criação no livro de Gênesis e as Escrituras como um todo indicam que
foi Deus quem planejou que a linguagem (especificamente a linguagem verbal,
tanto na forma escrita, quanto na forma oral) fosse o meio de comunicação entre Si mesmo e o homem. Daí a
utilização da linguagem escrita na Sua Palavra revelada – a Bíblia –, e também
da linguagem oral, tanto da parte de Deus, quanto da parte dos homens, sendo
ela utilizada na interação direta ou indireta (por meio de profetas, anjos, e
ministros do evangelho) entre Deus e os homens.
Assim, embora o homem
tenha perdido, em virtude da queda, a Imago
Dei (imagem de Deus) em seu sentido restrito ou específico (o reflexo do
conhecimento, da justiça e da santidade perfeita de Deus), ele ainda carrega a
imagem de Deus no seu sentido mais amplo. Ele ainda mantém características que
o posicionam acima de todos os animais da criação, uma das quais (e das mais
importantes delas) é a capacidade de comunicação e do uso consciente da
linguagem, a qual permite a comunicação entre o homem e o seu Criador e Redentor.
Essa capacidade de
interação por meio da linguagem é um bem comum, ou seja, concedido a todos os
homens. Por meio da linguagem, eles podem dar expressão aos seus pensamentos e
sentimentos, bem como assimilar os pensamentos e sentimentos de outros,
tornando possível a realização das atividades do pensamento e da reflexão
pessoal, da vida em sociedade e das manifestações culturais. Além disso, a
língua, particularmente em sua forma escrita, é o principal meio de transmissão
de informações e experiências de geração a geração, sendo, desse modo,
permitido às gerações subsequentes o acesso às informações e experiências do
passado.
No entanto, o ensino
bíblico deixa claro que, em virtude da queda do homem e da perda da imagem de
Deus original, o uso que o homem tem feito da linguagem – bem como de toda a
criação – tornou-se desvirtuado pelo pecado. A língua se transformou em uma fonte
de desentendimentos, de discórdias, de enganos, de fraudes e de desonestidades.
Agora, o homem em seu estado natural (não-convertido) usa a língua e a
linguagem de maneira pecaminosa e para a glória de si mesmo, ao invés de
utilizá-la para a glória de Deus, que é objetivo para o qual ele foi dotado
dela.
Por esta razão,
muitos têm condenado, ao longo dos séculos da história da igreja e da educação,
a arte poética como sendo produto de uma mente caída e idólatra, e rotulado a
literatura como “perigosa e, na melhor das hipóteses, uma perda de tempo”
(Williams, Donald. in: Christian Poetics, Past and Present). Ao mesmo tempo,
contudo, a igreja tem sido responsável pela criação das melhores obras
literárias que o mundo já viu. Esta contradição, como sugere Williams, é resultado
da dificuldade sempre constante no meio cristão para aplicar à literatura o
princípio geral do Novo Testamento referente ao “estar no mundo, mas não ser do
mundo” (João 17:11-16). Consideraremos este embate de modo mais específico em outra
ocasião.
Compreendamos desde
já, portanto, que a linguagem em si é um precioso dom de Deus. O problema não
está nela ou na literatura em si, e sim no homem caído que a profere ou escreve. Ela
pode ser instrumento para o maior bem, ou para o maior mal. O homem pode abusar dela e utilizá-la para a exaltação de si mesmo e para comunicar valores contrários às escrituras, ou o homem regenerado pode usá-la corretamente para a glória do Seu Mestre e para a promoção das Suas verdades. Que possamos ensinar
os nossos filhos e alunos a amá-la e a empregá-la para este maior bem!
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