“Como Maçãs de Ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a seu tempo.” (Pv. 25.11)

“Feliz o homem que acha a sabedoria e o homem que adquire o conhecimento;
... é Árvore de Vida para os que a alcançam, e felizes são todos os que a retêm." (Pv. 3:13,18)

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

UMA VISÃO HISTÓRICA DA CONTRIBUIÇÃO DA REFORMA PARA A EDUCAÇÃO


Estaremos disponibilizando neste blog a primeira parte da Dissertação "Fundamentos Históricos e Filosóficos de uma Educação Bíblico-Reformada", Parte 1: Educação Reformada: Uma Visão Histórica", numa versão condensada para leitura e impressão. Trata-se de um breve histórico da Educação Reformada, desde as suas raízes - que remetem à vida e a obra de Cristo e da primeira igreja cristã apostólica - até uma visão panorâmica da educação reformada em diversos países no mundo atual. A segunda parte desta monografia, sobre os "Fundamentos Filosóficos da Educação Reformada" pode ser encontrada neste blog, na seção de "Filosofia da Educação".  Os capítulos sobre os Fundamentos Históricos da Educação Bíblico Reformada estarão listados dentro da seção de História da Educação, possivelmente divididos em partes menores:


CAPÍTULO 2: A EDUCAÇÃO RELIGIOSA REFORMADA( Post Atual)

CAPÍTULO 3: A EDUCAÇÃO REFORMADA NO SÉCULO XVII

CAPÍTULO 4: HERANÇA REFORMADA NA EDUCAÇÃO DOS PAÍSES PROTESTANTES

O leitor que desejar usar ou citar parte deste trabalho pode fazê-lo, desde que indique os dados bibliográficos da obra, abaixo:

ANGLADA, Karis Beatriz Gueiros    
Fundamentos Históricos e Filosóficos de uma Educação Bíblico-Reformada/ Karis Beatriz Gueiros Anglada.    
300 f.
            Monografia (graduação) – Universidade do Estado do Pará. Centro de Ciências Sociais e Educação. Belém, 2004.              
Área de Concentração: Educação
            Orientador: Maria Betânia Barbosa Albuquerque.
1. Educação 2. Filosofia 3. Religião Cristã/Reformada

 

CAPÍTULO 2

A Educação Religiosa Reformada

 

2.1 O Advento da Reforma e seu Significado


 


2.1.1 Quando a Igreja Primitiva Cristã passou a ser Católica


 

Nos três primeiros séculos da religião cristã, os cristãos foram duramente perseguidos pelo Império Romano, principalmente devido a sua fidelidade antes à Bíblia do que ao Estado. “O cristão deveria obedecer ao Estado, enquanto este não lhe exigisse uma violação de sua submissão moral e espiritual a Deus” (CAIRNS, 1990, p. 77). Cairns (1990, p. 78) lembra ainda que os primeiros cristãos tiveram de lutar em duas frentes: “ao mesmo tempo em que lutava para preservar sua existência diante das tentativas do estado romano de acabar com ela, a Igreja lutava também para preservar a pureza da doutrina”. Ela teve que se posicionar contra as heresias provindas da filosofia grega pagã, como o gnosticismo, o maniqueísmo, o neoplatonismo, e contra os desvios teológicos provenientes de interpretações equivocadas ou ênfases exageradas, a exemplo do montanismo, do monaquianismo, o donatismo, dentre outros.

As lutas internas causaram a necessidade da Igreja defender sua fé, estabelecer o cânon dos livros inspirados, e escrever obras apologéticas. Através desses mecanismos, o Cristianismo, mesmo fortemente perseguido, se tornou muito forte dentro do Império Romano, de modo que já não poderia ser destruído. O imperador Constantino percebeu isso e possivelmente se convenceu de que o Deus dos cristãos era bastante forte e o fez desejar as orações dos cristãos para abençoar seu governo, e é provável que tenha percebido também que o Cristianismo, se fosse ajudado e fortalecido, constituía um poderoso elemento para a unificação de todos os povos do Império (NICHOLS, 1981, p. 42-43). Sejam quais fossem as suas intenções, o fato é que em 313, Constantino garantiu aos cristãos a liberdade de culto pelo Edito de Milão, e Teodósio I promulgou em 380 um edito tornando o cristianismo a religião exclusiva do Estado, com punição prevista para os que adotassem outra religião (CAIRNS, 1990, p. 100-101).

Com as invasões dos bárbaros e o declínio do Império Romano, a Igreja enfrentou o problema duplo de ser “sal na terra” e “luz no mundo”. Assim, como “sal”, deveria preservar a cultura heleno-hebraica, ameaçada de destruição, e como luz, tinha a função de levar o Evangelho aos povos nômades bárbaros. “Todavia”, lembra Cairns, “durante o processo de conservar a cultura e converter os bárbaros, a Igreja perdeu muito de sua força espiritual, em parte devido à secularização e à ingerência do Estado em seus negócios. O desenvolvimento institucional e a doutrina foram negativamente afetados” (1990, p. 99).

Por volta de 400 já se pode dizer que a Igreja primitiva havia deixado de existir e a Igreja Católica como é conhecida até hoje tinha se desenvolvido completamente, “com sua organização hierárquica completa, o clero exercendo demasiado domínio espiritual sobre o povo, os concílios criando leis eclesiásticas, o culto impressionante e cheio de mistérios, seus dogmas autoritários e a condenação, como hereges, dos cristãos que não concordam ou não se conformam com eles” (NICHOLS, 1981, p. 52). Além disso, foi adotada a idéia agostiniana de que os primeiros bispos da Igreja foram escolhidos pelos apóstolos, e recebiam, por sucessão regular, a plenitude dos dons do Espírito, sendo os únicos capazes de preservar a fé pura, ministrar o ensino verdadeiro, guardar os verdadeiros sacramentos e identificar a verdadeira Igreja Católica, visto que somente na Igreja em que esses bispos se sucediam havia verdadeira salvação (NICHOLS, 1981, p. 52-53). Com o crescimento do poder do bispo de Roma, e o entendimento de que Pedro havia sido o primeiro bispo de Roma, Leão I foi chamado de “o primeiro papa” (NICHOLS, 1981, p. 53). A Igreja Católica predominou e cresceu em poder durante toda a Idade Média.

Por volta do século XV, final da Idade Média, a religião cristã universal ou católica havia se distanciado completamente do cristianismo bíblico em muitos sentidos. Tanto na sua doutrina e nas práticas litúrgicas, quanto na vida moral. Doutrinas como a salvação pelas obras, o purgatório, a mariolatria, a suprema autoridade papal, o celibato e o livre arbítrio foram desenvolvidas pela Igreja medieval. 

Quanto ao culto, a Igreja havia acrescido uma série de ritos e práticas que destruíram a simplicidade do culto do Novo Testamento. Anglada (1999, p. 15) elenca diversos elementos, entre eles a própria missa, “considerada pela Igreja Católica como uma reedição não-cruenta do sacrifício de Cristo”, a missa pelos mortos, a missa de sétimo dia, o confessionário, os sete sacramentos, as indulgências, as penitências, a reza de terços, o sinal da cruz, o uso do latim na missa, as imagens, os rosários, as peregrinações, as procissões, as velas, as vestes sacras, os dias santos, etc., de modo que não mais a Bíblia, mas as autoridades da Igreja Católica eram quem ditavam como Deus deveria ser adorado.

A decadência doutrinária e litúrgica e o afastamento da Palavra de Deus acarretaram uma decadência moral na Igreja medieval. Essa frouxidão moral começara desde o século IV, com a adoção do Cristianismo como religião oficial do Império Romano. O status de religião oficial atraiu um grande número de pessoas ao cristianismo por interesses escusos, e a Igreja inchou de cristãos professos, não sinceros. Nichols registra as conseqüências do favor imperial para o Cristianismo:

(...) o poder oficial contribuiu para o número de cristãos se dilatar. Este benefício foi, porém, duvidoso. Logo que Constantino se constituiu patrono do Cristianismo, este tornou-se uma religião eivada de heresias e inovações. Os sucessores desse imperador seguiram seu exemplo e com mais ênfase. Eles sustentavam o Cristianismo, interferiam e exerciam autoridade nos negócios da Igreja. (...) Na realidade, tal situação não constituía uma vitória, pois o novo estado de coisas veio provar que nas igrejas havia multidões que nada conheciam do Cristianismo, nem o possuíam. (1981, p. 44).

As conseqüências na vida da Igreja foram logo percebidas:

A entrada de multidões nas igrejas impediram-nas de manter aquela vigilância e aquele escrúpulo necessários ao preparo e ao exame cuidadoso dos candidatos, como sempre o fizera. A maioria dos que entravam para a Igreja era realmente pagã, gente de vida reprovável. Era natural que aparecesse uma queda do nível moral do caráter cristão  (1981, p. 46).

O Estado tinha grande autoridade nos negócios eclesiásticos e a Igreja nos do Estado, e a Igreja alcançara um poder e uma riqueza enormes, que corrompiam seus oficiais. A corrupção do clero tem sido reconhecida como uma das causas mais imediatas para a eclosão da Reforma do século XVI. A cobiça, a avareza, a luxúria, a embriaguez, a glutonaria, a impureza sexual eram práticas ordinárias praticadas pelo clero (ANGLADA, 1999, p. 16). Ao lado disso, o povo, que deveria estar sob os cuidados espirituais e a assistência material da Igreja, era abandonado pela negligência do clero.

A educação medieval também havia se afastado das primeiras práticas. Grandemente influenciada pelo sistema escolástico, a educação combinava a cultura cristã com elementos da cultura bárbara. A Igreja Católica controlou totalmente a educação, e “durante muito tempo, o clero constituiu a maioria da minoria intelectual, monopolizando o saber ler e escrever e acabou por dominar as atividades culturais, formulando os princípios jurídicos e políticos do mundo medieval” (RECCO, 2003, p. 1). Os mosteiros haviam se multiplicado e constituíam praticamente as únicas escolas do período, que objetivavam a formação eclesiástica. Essa educação não preparava para as várias atividades normais da vida, mas enfatizava o fim religioso.

 


2.1.2 Origens e Eclosão da Reforma


 

Alguns no seio da própria Igreja Católica começaram a discernir e a denunciar os abusos cometidos pela Igreja. Surgiram movimentos de protesto desde o século XVII, com os Petrobrussianos, os Cataristas e Valdenses e os irmãos. Os pré-reformadores, João Wycliff na Inglaterra, e João Huss, na Boêmia, instalaram revoltas nos séculos XIV e XV contra a Igreja Católica, contra a corrupção do clero, contra a autoridade papal. Wycliff foi o responsável pela primeira tradução da Bíblia para a língua inglesa e Huss foi martirizado, e seu martírio fortaleceu o espírito de revolta contra a autoridade papal.

Nesse contexto de revolta, um destes monges, dedicando-se ao estudo sincero das Escrituras Sagradas, passou a compreender antigas doutrinas cristãs, e passou a lutar por uma reforma religiosa nas práticas da Igreja. Esse homem foi Martinho Lutero, conhecido como o iniciador da Reforma.

No dia 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero afixou as famosas 95 teses na porta da capela de Wittenberg, na Alemanha, denunciando o falso ensino e as práticas da Igreja Católica consideradas corrompidas, como a venda de indulgências, a simonia, a avareza, a ambição política e a degradação dos costumes morais por parte de grande parte do clero. Essas teses foram copiadas, publicadas, e distribuídas por toda a Europa em poucos meses e se tornaram um instrumento na promoção da Reforma do século XVI, a qual se aprofundou, adquirindo caráter teológico, eclesiástico e litúrgico.

Há diversas versões a respeito da natureza da Reforma protestante, de causas e das intenções dos reformadores, muitas das quais consideradas pelos protestantes como versões distorcidas, freqüentes especialmente no contexto de países de maioria católica como é o caso do Brasil. O historiador católico Rui de Aires Bello (1969, p. 151), por exemplo, atribui como causa da reforma “o caráter autoritário e impetuoso de Lutero”, e a preponderância de interesses políticos sobre os de ordem religiosa, chegando ao ponto de afirmar, no âmbito das conseqüências educacionais, que “foi por conseguinte inteiramente nula, quando não negativa a influência da Reforma no conteúdo da educação” e que “ na organização do ensino, a Reforma produziu as mais desastrosas conseqüências, diminuindo o número de escolas e decrescendo a sua eficácia” (p. 160).

Os historiadores de um modo geral apresentam várias possibilidades explicativas para as causas desse movimento. Além da corrupção que envolvia grande parte do clero e dos protestos dos chamados pré-reformadores (DE ROSA, 1993, p. 139), a própria Renascença, com suas descobertas científicas revolucionárias, a invenção da imprensa, o retorno à cultura clássica com a disseminação da língua grega e o ressurgimento e elevação da mente humana que anunciava novos caminhos, também é apontada como poderosa precursora da renovação que se aproximava nas idéias religiosas.

O desenvolvimento do espírito crítico da corrente humanista típica da renascença veio valorizar a individualidade livre ante qualquer coerção exterior, o racionalismo, a tendência para observação, comparação, crítica e insistência nas fontes originais, que também são características e impulsionadores da Reforma. Esses fatores proporcionaram especialmente o desenvolvimento de uma nova hermenêutica, que rompeu com a interpretação alegórica medieval e enfatizou a necessidade de uma interpretação histórico-gramatical da Bíblia.

As inquietações sociais, especialmente na Alemanha, e as revoltas camponesas contra a exploração e indiferença dos nobres e sacerdotes que se recusavam a fazer alguma coisa para libertar as camadas pobres (NICHOLS, 1981, p. 141) também criaram uma situação favorável à Reforma. Além disso, outros fatores sociais, políticos e econômicos acabaram se agregando ao movimento no decorrer de seu desenvolvimento, a exemplo da adesão dos nobres e reis interessados no confisco dos bens do clero e do apoio dos comerciantes que viam no pensamento protestante uma libertação das restrições católicas quanto ao lucro, e assim por diante.

A perspectiva reformada considera todas essas influências como tendo seu lugar. Entretanto, enfatiza a natureza e as causas eminentemente espirituais da Reforma, sobretudo as que permitiram a redescoberta do ensino bíblico através de novas traduções, de edições das Escrituras publicadas nas suas línguas originais, o grego e o hebraico, resgatados no Renascimento, e de gramáticas desses idiomas, promovendo o interesse renovado pelas Escrituras e possibilitando o acesso dos reformadores à Palavra de Deus. Foi a partir dessas possibilidades que Lutero pôde, através de seu estudo e exposição no Livro dos Salmos e na Epístola aos Romanos, constatar os erros da Igreja Católica e discernir doutrinas revolucionárias como a da justificação pela fé somente e do sacerdócio universal de todos os crentes.

Um dos aspectos em que o rompimento com a Igreja católica foi mais forte e importante foi no campo doutrinário. A redescoberta das Escrituras e a necessidade de se posicionar ante as práticas da Igreja Católica, ocasionaram o desenvolvimento das doutrinas relacionadas às próprias Escrituras, como as doutrinas da clareza, suficiência e suprema autoridade das Escrituras em matéria de fé e prática, e a redescoberta da pregação da Palavra, que levou adiante a Reforma. Resgatou-se ainda o conceito da gravidade do pecado, que não podia ser banalizado e cujo resgate não poderia ser efetuado pelo dinheiro, mas somente poderia ser expiado através do arrependimento e da fé na morte expiatória de Cristo.

A doutrina considerada mais marcante da Reforma foi a da justificação pela graça de Deus, somente pela fé, não atribuindo nenhum valor salvífico às boas obras humanas. A doutrina do sacerdócio individual do crente foi também um dos pilares da Reforma, pois apresentando a pessoa de Cristo como único mediador entre Deus e os homens, concedia a cada salvo acesso direto à presença de Deus por intermédio do sacrifício de Cristo na cruz e pela operação do Espírito no homem interior, sem a necessidade da intermediação de qualquer outro ser, o que pôs em xeque o ofício dos padres, dos santos, de Maria e do Papa como intermediários entre os homens e Deus.

E, por fim, a Reforma apresentou o conceito da soberania e grandeza de Deus e a aceitação de todos os Seus atributos como revelados nas Escrituras Sagradas (amor, justiça, fidelidade, santidade, bondade, severidade, para citar alguns), de forma que só Ele é infalível, e sua autoridade não pode ser compartilhada com a do papa ou Concílios da Igreja.

 


2.1.3 Expansão e Significado Educacional da Reforma


 

Em suma, a reforma iniciada por Lutero ficou conhecida como a Reforma Protestante. Ela foi um movimento de caráter religioso que teve início na Europa do Século XVI com influências em grande parte do mundo, o qual condenou as práticas e ensinos da Igreja Católica medieval, e propôs o retorno às Escrituras Sagradas em suas línguas originais na busca de uma correta interpretação. Este movimento culminou com a divisão da Igreja cristã em dois grupos principais e antagônicos em muitos aspectos: católicos e protestantes.

A reforma iniciada na Alemanha expandiu-se para outros países na Europa, e mesmo nações como a Espanha e a Itália sentiram a influência daquele despertamento religioso. A Reforma, entretanto, foi bem mais intensa e profunda na Suíça, na França, nos Países Baixos, na Escócia e na Inglaterra. Entre os protestantes, houve algumas discordâncias em torno de certos pontos doutrinários ou litúrgicos menos importantes, gerando algumas ramificações. Na Alemanha, a Igreja Luterana tomou formas bem específicas. Na Inglaterra, ocorreu o mesmo com a Igreja Anglicana. E nos demais países, especialmente na França, Suíça e Escócia, o líder Calvino fundou a Igreja Calvinista ou Reformada no sentido estrito do termo.

A Reforma é entendida como um dos eventos mais cruciais na história do Cristianismo depois da vinda de Cristo ao mundo. Ela imprimiu novos rumos à Religião Cristã, e o fez a partir do retorno ao Cristianismo simples da Igreja Primitiva e da redescoberta da Bíblia como a palavra autoritativa de Deus. Deste evento ocorrido no século XVI originaram-se as Igrejas protestantes, que se opuseram e se distanciaram do Catolicismo romano em suas doutrinas e práticas, estabelecendo princípios que não se limitaram àquele tempo e espaço históricos, mas até hoje orientam a vida das Igrejas, da mentalidade, e por conseguinte, do pensamento educacional reformado.

É a este evento histórico que remonta a fé “reformada” como mantenedora e propulsora da educação reformada estudada e proposta neste trabalho, entendida como representante e defensora do Cristianismo bíblico e simples. Terry L. Johnson (2001, p. 39) deixa claro o sentido desse termo:

O que quero dizer com “reformada”, é aquela tradição teológica cujas raízes remontam a Calvino – e, talvez, alguém poderia contestar e dizer: vão até Agostinho, antes de Calvino. Mas nós nos referimos primeiramente às reformas do século XVI, reformas das corrupções do final do período da Igreja Medieval e Renascentista, e o movimento que estas produziram. Referimo-nos à herança calvinista emanante de Genebra, que resultou nas Igrejas Reformadas Suíças, Holandesas e Alemães; no mundo anglo-saxônico resultou na Igreja Reformada Escocesa, que ficou conhecida como Presbiteriana; resultou, também, no Puritanismo Inglês, no Puritanismo da Nova Inglaterra e também na antiga escola de Princeton.

Daí a importância de se conhecer mais a fundo as conseqüências educacionais desse movimento determinante para a história da Igreja e para o entendimento apropriado da concepção religiosa que define a perspectiva desse trabalho sobre a educação reformada.

O advento da Reforma Protestante, e principalmente suas doutrinas, tem implicações diretas e indiretas sobre a educação de modo geral, e sobre a educação reformada de modo particular. Os principais reformadores perceberam isso, e trataram, juntamente com o problema eclesiástico, dos problemas sociais e educacionais de seu tempo, estudando soluções, fazendo propostas e envolvendo-se numa obra de reforma educacional, que tinha como centro a Bíblia e seu ensino e o acesso de todos às suas verdades.

Pretende-se que uma análise das contribuições pedagógicas dos reformadores e do desenvolvimento histórico da Reforma evidencie as suas principais doutrinas e princípios educacionais.

 

2.2 Principais Reformadores e sua Pedagogia


 


2.2.1 Pedagogos da Reforma Luterana


 

Dentre os Reformadores, Martinho Lutero (1483-1546) foi o que primeiro estimulou a formulação de um novo sistema educacional, por meio de impulso pessoal e político, utilizando-se de suas cartas e influência junto aos nobres alemães. Lutero discernia o declínio e a ruína da educação que era oferecida (quando oferecida) às crianças nas escolas, universidades e monastérios medievais. Segundo ele, os pais não consideravam o ensino ministrado nos monastérios proveitoso para quem não desejasse ser padre, e por isso já não enviavam seus filhos à escola, antes preferiam que trabalhassem em coisas úteis para ganhar a vida.

Desde 1516 é possível encontrar referências espalhadas nos escritos de Lutero relacionadas à importância de uma educação completa e minuciosa para um povo que segundo ele era pobre, jovem, sem direção e instrução. Lutero escreveu também algumas obras especificamente educacionais, que demonstram a sua preocupação com a situação educacional na Alemanha. Elas evidenciam a importância que este reformador conferia à instrução dos jovens tanto para o desenvolvimento da Reforma religiosa, como para o crescimento e fortalecimento da cidade no âmbito político, econômico, social e cultural. Esse posicionamento de Lutero em suas obras e ações no campo educacional são fatores que vieram a influenciar professores, pregadores e governantes por toda a Alemanha e encorajaram muitos teólogos a considerarem o papel da educação na sociedade.

O pensamento político-educacional de Lutero é um dos aspectos estudados até hoje por ter sido ele o primeiro a deslocar da Igreja para o Estado o direito e o dever de educar (CESCA, 1997). Nesse sentido, mesmo escritores católicos reconhecem que a doutrina pedagógica de Lutero mostrou-se original quanto à “ênfase estabelecida sobre a missão educativa do Estado, como também, a obrigatoriedade escolar, o que para a época, constituía sem dúvida uma grande inovação” (BELLO, 1969, p. 153).

Lutero trabalhou, juntamente com seu colaborador Melânchthon (1479-1560), para a implantação da escola primária para todos, e defendia a educação universal e pública. Paul Monroe (1988, p. 178) considera o caráter tríplice do movimento educacional estabelecido por Lutero:

(...) lutava para libertar a educação, através do Estado, das peias que a Igreja viera forjando durante séculos; empenhava-se para a disseminação  mais ampla das oportunidades para a educação; sustentava uma concepção mais verdadeira da função da educação na vida religiosa e secular.

O pensamento educacional de Lutero pode ser melhor estudado a partir de três de suas obras educacionais. São elas a carta Para os membros dos Conselhos de Todas as Cidades na Alemanha para que estabeleçam e mantenham Escolas Cristãs (1524); um Sermão sobre a Manutenção de Crianças na Escola (1530), publicado na forma de carta aberta, e Instruções para Supervisores em Visita às Congregações da Saxônia, uma interessante descrição da organização e do currículo proposto por Lutero para uma escola cristã. Cabe examinar alguns pontos que se destacam nestas obras.

A carta Para os membros dos Conselhos de Todas as Cidades na Alemanha para que estabeleçam e mantenham Escolas Cristãs (1524) foi escrita em resposta ao declínio das escolas eclesiásticas bem como ao sentimento anti-educacional que surgiu em vários lugares na Alemanha. Esse clima anti-educacional estava ligado à natureza da instrução oferecida pelas escolas eclesiásticas e mosteiros, considerada inútil para quem não estivesse interessado em ser oficial da Igreja, e essa falta de reconhecimento social se refletiu no decrescente número de alunos matriculados. Em vista disso, Lutero insta os leitores, convocando-os a darem a devida importância à educação dos jovens e à formação de bons professores:

Se é necessário, caros senhores, gastar anualmente grandes somas para compra de armas, estradas, represas e tantos outros itens para que uma cidade possa gozar de paz e prosperidade temporal, por que não deveríamos ao menos fazer o mesmo para a pobre e necessitada juventude, a fim de termos alguns bons e competentes professores nas escolas? (1995, p. 303)

As motivações oferecidas para que cada cidadão considere e venha a apoiar a educação cristã são três: 1) este é um bom e precioso investimento, em comparação com o gasto com a venda de indulgências, missas, vigílias, testamentos, comemorações, esmolas, peregrinações, etc., a que os cristão católicos estavam submetidos e haviam sido libertos pela Reforma. 2) o povo alemão não deveria desperdiçar esta oportunidade que lhe estava sendo oferecida de acesso à Palavra de Deus, de educação de qualidade em pouco tempo e incentivo à arte, pois isto era um dom da graça de Deus que a qualquer momento lhe poderia ser retirado. Como insistiu Lutero:

Temos no presente, os mais excelentes e letrados homens, possuidores de boa linguagem e adornados com arte, que podem prestar inestimável serviço, se os usarmos como instrutores de nossos jovens. Será que não é evidente que agora temos condições de preparar um jovem em três anos e assim aos quinze ou dezoito anos este jovem terá recebido mais do que se estivesse freqüentando universidades e monastérios até agora (1995, p. 304).

E ainda 3) a educação dos jovens é mandamento de Deus, evidenciado em muitas passagens das Sagradas Escrituras, tanto no Antigo como no Novo testamento, e assim constitui um pecado para os pais negligenciar o propósito final de suas vidas, a saber, o cuidado para com os seus filhos. Lutero expressou essa idéia de modo contundente: “Acredito firmemente que entre os pecados contra nossos semelhantes, nenhum pesa tanto contra o mundo aos olhos de Deus ou mereça tão severo castigo, quanto o pecado que cometemos contra nossos filhos por não darmos a eles adequada educação.” (1995, p.305).

Embora Lutero considere que a responsabilidade primordial da educação dos filhos pertença aos pais, ele reconhece que existem diversas razões pelas quais os pais negligenciam seus deveres, razões que muitas vezes estão acima de si mesmos. Há pais que mesmo que tivessem a habilidade para fazê-lo, não o fariam por falta de piedade e decência; a grande maioria dos pais não está especificamente capacitada para este trabalho, pois eles mesmos não foram adequadamente educados, faltando-lhe as habilidades para ensinar de modo apropriado; e há a situação em que ainda que os pais fossem aptos e desejosos de educar os seus filhos, lhes faltaria tempo e oportunidade para tal, pelos seus muitos afazeres e obrigações. “A necessidade nos compele, portanto, para que tenhamos mestres e escolas públicas para nossos filhos... Isso posto, mostra portanto, que é dever dos conselheiros e magistrados devotar grande cuidado e atenção aos jovens”. (p. 4)

Assim, quando os pais negligenciam seu dever, alguém tem de assumir a responsabilidade pela educação dos jovens, e neste momento Lutero volta-se aos conselheiros e magistrados, exortando-os a assumirem esta responsabilidade e tarefa. Segundo ele, isto seria de muito bom proveito para o próprio governo civil e desenvolvimento da cidade:

(...) O maior patrimônio, segurança, bem estar e força de uma cidade consiste em ter muitos cidadãos instruídos, capazes, sábios, honrados e bem-educados, capazes de acumular tesouros, conservá-los e usa-los bem, levando ao bem-estar de todos na cidade. (LUTERO, 1995, p. 308).

A questão na verdade é como ter pessoas habilidosas e treinadas no governo. Com relação ao assunto, somos desafiados e envergonhados pelos ímpios, pois em tempos passados, especialmente os gregos e romanos, sem saber que isto agradava a Deus, instruíam e educavam seus filhos e filhas com tanto empenho que se tornavam realmente hábeis: tanto que me envergonho de nossos cristãos e especialmente de nós, alemães, por sermos tão completamente embrutecidos e de visão curta, que ousamos dizer: “para que servem as escolas, se não vamos nos tornar padres?” Não obstante sabemos, ou deveríamos saber o quanto é necessário, útil e agradável a Deus que um príncipe, senhor ou conselheiro seja instruído e capaz de viver cristãmente segundo sua condição.

E, como disse, mesmo se não existisse a alma e não fossem necessárias a escola e as línguas para conhecer as Escrituras e a Deus, todavia, para que se estabelecessem em todos os lugares as melhores escolas, tanto para meninos como para meninas, bastaria só esta razão: que o mundo, para conservar exteriormente sua propriedade temporal, precisa de homens e mulheres instruídos e capazes; de modo que os homens sejam capazes de governar adequadamente cidades e cidadãos e as mulheres capazes de dirigir e manter a casa, as crianças e os servos. Ora, homens desse tipo devem ser educados assim desde crianças, como também tais mulheres se educam assim desde pequenas. Portanto, é necessário que meninos e meninas sejam bem-educados e instruídos desde a infância”. ( LUTERO, 1995, p. 312)

Lutero delineia ainda um novo tipo de escola, em que as crianças possam estudar com satisfação e prazer, aprendendo línguas, artes, história, matemática, canto, como sendo para os jovens entretenimento, e isto os daria formidáveis habilidades para se tornarem aptos em vários campos. A que os jovens freqüentem essas escolas Lutero exorta não só a governantes como também aos pais, para que não privem seus filhos dessas escolas apenas por não quererem que seus filhos sejam tirados de seus afazeres domésticos.

Lutero esforça-se por tentar conciliar o trabalho manual produtivo com a importância do trabalho intelectual:

Minha idéia é que os meninos freqüentem essas escolas por uma ou duas horas ao dia e o tempo restante seja gasto trabalhando em casa, aprendendo uma profissão ou fazendo o que quer que seus pais desejem; para que, tanto estudo como trabalho andem de mãos dadas, enquanto eles são jovens e capazes de fazer ambos. (LUTERO, 1995, p. 313).

FABER (1998, p. 3-4) no seu comentário sobre esta carta de Lutero de 1524 ressalta ainda outro aspecto nela desenvolvido:

(...) não somente o Estado se beneficiaria de uma educação reformada, mas também – e especialmente – a Igreja. Aqui, também, Lutero defendeu o estudo da vida e da literatura antiga, pois estava convencido de que o conhecimento da antiguidade produziria crentes com uma melhor compreensão do contexto histórico, social e lingüístico da Bíblia.

Para isso, as Escrituras deveriam ser preservadas e estudadas com diligência em suas línguas originais, para que a Palavra de Deus viesse a ser um livro aberto. Encontramos ainda uma importante exortação de Lutero para que não sejam medidos esforços nem custos para a construção de boas bibliotecas, especialmente nas maiores cidades, as quais se constituiriam de uma seleção dos melhores livros, que incluiriam a Bíblia em todas as línguas existentes, os melhores comentários bíblicos, os livros que auxiliassem no aprendizado de idiomas e de gramática, os livros de artes liberais e de todas as outras artes, além de livros de direito e medicina.

Outro tratado de Lutero sobre a educação é o Sermão sobre a Manutenção das Crianças na Escola, de 1530, destinada aos pregadores reformados de todo o país, aos quais deseja convencer acerca das vantagens da educação cristã para o desenvolvimento espiritual do cristão. Neste sermão, o foco recai não mais na necessidade da educação ou no incentivo ao estabelecimento de escolas, mas no desenvolvimento apropriado delas e de seus currículos. Lutero estabelece que o fundamento e o objetivo da educação é o conhecimento da Escritura, ou seja, levar as crianças a aprender mais sobre Deus e suas obras no mundo criado e na história, embora reconhecesse que a educação por si própria não contribuía para a salvação e piedade do crente:

A corrupção da vontade humana, argumentava Lutero, é tão grande que sem a justiça de Deus ninguém pode progredir na piedade, muito menos ser salvo. Igualmente condenados diante de Deus, todos os crentes são igualmente salvos através da graça de Deus, mediante a fé na morte de Cristo – não obstante a educação. Sem o Evangelho, portanto, a educação não tem sentido. E é somente da perspectiva do Evangelho que a educação pode ser valorizada. Sobre o fundamento das Escrituras, todos os jovens deveriam buscar a educação como um meio de se tornarem homens e mulheres responsáveis, que podem governar igrejas, países, pessoas e suas casas. ( FABER, 1998, p.5).

Em resposta ao materialismo crescente entre seus compatriotas que objetivavam na educação de seus filhos apenas sua riqueza e confortos físicos e não o espiritual, Lutero argumenta em toda a carta a real função da esfera secular e sua relação com o reino de Deus:

(...) a real função da esfera secular é (...) produzir uma sociedade ordeira, justa e pacífica na qual o estado espiritual possa ser promovido. Justiça, ordem social e a preservação da vida estão compreendidas na jurisdição do governo secular, o qual deve ser exercido por pessoas devidamente educadas para tais tarefas. Deste modo, o reino temporal promove o reino de Deus na terra, à medida que é subserviente à sua Palavra e busca melhorar a conduta de acordo com a sua vontade. Também por esta razão, “é dever da autoridade secular compelir seus súditos a manter seus filhos na escola... de forma que sempre haja pregadores, juristas, pastores, escritores, médicos, diretores de escola e outros... (256)” . Afinal, no reino secular, “toda ocupação tem sua própria honra diante de Deus, bem como seus próprios requisitos e deveres (246). (FABER, 1998, p. 5).

O terceiro escrito assinado por Lutero, mas redigido por seu colaborador Melanchthon, também de grande importância educacional, encontra-se entre suas Instruções para Supervisores em visita às Congregações da Saxônia. Desta vez Lutero insiste com os pregadores, para que exortem as pessoas a enviarem seus filhos a escola, para que cresçam pessoas habilitadas para o serviço de Deus nas Igrejas e no governo secular.

Ao detectar “muita falha nas escolas” (LUTERO; MELÂNCHTHON, p. 314), Lutero e Melanchthon estabelecem um programa de estudo, para que os jovens possam ser instruídos corretamente. Três orientações iniciais são dadas: a educação deve se iniciar com o ensino do Latim; as crianças não devem ser sobrecarregadas com muitos livros e com a multiplicidade de tarefas e conteúdos; as crianças devem ser dividas em grupos.

Estes grupos são chamados de Primeira, Segunda e Terceira Classe, e Lutero chega a detalhar os conteúdos e métodos a serem desenvolvidos em cada uma. A primeira classe consiste das crianças que estão começando a ler e devem aprender primeiro a ler a cartilha com o Alfabeto, Pai Nosso, Credo e outras orações, depois aumentar seu vocabulário com os versos de Cato e Donatus, e esta etapa inclui treinar a escrita, memorização de novo vocabulário, música e canto.

A segunda classe consiste das crianças que já podem ler e devem agora aprender gramática. Seu currículo inclui a música, os escritos de Esopo, Mosselanus e Erasmo, Terence, Plautus, que consistiam de fábulas e provérbios e, dentro da gramática, devem aprender etimologia, sintaxe e prosódia, nesta ordem. As atividades de sala de aula incluem interpretação de texto, leitura de livros, recitar o Pai Nosso, o Credo, os Dez Mandamentos e aprender sua interpretação com vistas ao temor do Senhor, à fé e às boas obras, memorização de Salmos fáceis e exposição gramatical ou não dos livros bíblicos mais simples. Ressalta-se sempre o cuidado para não sobrecarregar os jovens com muitos livros e conteúdos, e também com o equilíbrio entre o ensino da Palavra de Deus e o ensino de autores e disciplinas seculares, pois Lutero considera ambos importantes e complementares na formação de seus alunos.

A Terceira Classe consiste de um grupo formado com as melhores crianças que desejassem continuar seus estudos. Estas estudariam Virgílio, Ovídio, Cícero, gramática, especialmente a prosódia, onde aprenderiam a compor versos, fariam outros exercícios escritos e, dominada a gramática e o Latim, poderiam dedicar-se à dialética e retórica.

Houve, no contexto da reforma alemã, outros educadores importantes, como o já citado Felipe Melanchthon (1479-1560), denominado o Preceptor da Alemanha, visto ter sido, para a Alemanha, na reforma educacional, o que Lutero foi na Reforma religiosa. De fato, Monroe comenta que:

(...) por ocasião de sua morte, quase não havia uma cidade em toda a Alemanha que não tivesse modificado as suas escolas, de acordo com o conselho direto de Melanchthon, ou suas sugestões gerais, e não havia quase nenhuma escola de alguma importância que não contasse com alguns de seus alunos entre seus professores. (MONROE, 1988, p. 179).

O centro irradiador destas influências foi a Universidade de Wittenberg, onde Melanchthon trabalhou ao lado de Lutero, os últimos 40 anos de sua vida. Sob sua influência, a universidade foi remodelada segundo os princípios protestantes e humanistas, tornando-se modelo de muitas universidades novas da Alemanha e dela saíam ou eram influenciados professores dos mais ilustres da época, como Neander, Trotzendorf e Sturm.

Mas foram os inúmeros escritos de Melanchthon que mais o aproximaram do alunado, especialmente os seus livros didáticos. Escreveu uma gramática grega, uma gramática latina e livros sobre dialética, retórica, ética, física, história, os quais foram adotados com sucesso nas escolas elementares e também sua teologia tornou-se livro didático para as universidades e escolas superiores protestantes. Seus escritos pedagógicos consistem principalmente em discursos inaugurais ou conferências para estudantes sobre o valor do estudo da literatura e da filosofia.

Destacam-se ainda, dentre os pedagogos da reforma luterana Johannes Bugenhagen (1485-1558), Johan Sturm (1507-1589) e Valentim Trotzendorf (1490-1556).

 

2.2.2 Pedagogos da Reforma Calvinista


 

João Calvino (1509-1564) é considerado o mais importante sistematizador da Reforma. Entre suas principais realizações estão seu famoso livro “As Institutas da Religião Cristã”, em que organiza e expressa a teologia reformada, inúmeros escritos e comentários bíblicos, e a marcante obra de reforma realizada e aplicada na cidade de Genebra durante os 26 anos em que ali governou, em que destacamos sua reforma educacional.

Com o propósito de tornar Genebra uma cidade cristã modelo, Calvino previu os meios para alcançá-lo: a reorganização da Igreja e de seu papel de liderança; a implementação de leis que expressassem a moral bíblica e um sistema educacional da maior qualidade.

Além do inigualável incentivo que deu à educação na Suíça, Calvino inspirou o desenvolvimento do protestantismo em toda parte, influenciando a reforma francesa, holandesa, escocesa e inglesa, com o que ficou conhecido como um reformador internacional.

Entusiasta estudioso do humanismo, Calvino reconhece o papel determinante da educação para preservar a igreja sã, garantir a administração pública e manter a humanidade entre os homens (GILES, 1987, p. 126).

Calvino não escreveu nenhum tratado específico sobre educação, mas é possível apreender de seus escritos e da obra educacional em Genebra as suas principais idéias e concepções acerca da natureza, propósito e responsabilidade da educação.

No estudo que T. M. Moore (1984) faz sobre a filosofia educacional de Calvino, ele destaca que, quanto à natureza e propósito da educação, Calvino via o ensino como meio de “promover o reino de Deus e promover o bem público” (1953, p. 24) através da preservação, juntamente com a pregação do Evangelho, das verdades da Palavra de Deus em face aos ensinos e práticas de seu tempo, que considerava como mentiras e deturpações.

A educação, portanto, não tinha seu fim em si mesma, mas era um meio que deveria levar à glória de Deus e à edificação da sua Igreja, podendo ser medida em termos de sua eficácia na consecução destes objetivos.

No que concerne à responsabilidade pela educação, Calvino postulava a responsabilidade mútua, tanto por parte do governo como das famílias através da Igreja. Para ele, “tanto os magistrados como a família teriam o seu papel na obra de educação, mas seria primariamente através da Igreja que esta tarefa seria organizada e realizada” (NAUTA, 1559 apud. MOORE, 1984, p. 145).

Dessa forma, a obra de educação deveria ser supervisionada e desenvolvida pela Igreja, representada por seus pastores, mestres e oficiais eleitos e norteada pelas Escrituras Sagradas, que são a única regra infalível de fé e conduta tanto para o crente individual quanto para a Igreja como um todo. A Igreja se envolvia diretamente na obra educacional pela pregação (que visava a instrução e edificação dos adultos) e pelo ensino do catecismo (principalmente para as crianças) e indiretamente através de um sistema educacional supervisionado pela Igreja.

O sistema educacional na Genebra de Calvino se desenvolveu em três níveis, elementar, secundário e universitário. A educação elementar era oferecida para todos no idioma vernáculo, que compreendia o ensino religioso no catecismo, além de leitura, escrita, aritmética, religião e exercícios de gramática (LUZURIAGA, 1987, p. 112).

Fundou ainda as escolas para as meninas, de que pouco se conhece, e os famosos Colleges, escolas secundárias preparatórias para a Universidade, em que se deveriam formar meninos nas línguas, na literatura clássica, na filosofia e na instrução religiosa, com vistas à formação de funcionários civis e eclesiásticos (LUZURIAGA, 1987, p. 112).

Na Universidade, deveria ser estudada “a teologia, as ciências e a matemática. Após a morte de Calvino foram incluídos no currículo Medicina e Direito. O propósito principal da Universidade era eminentemente prático, qual seja, preparar jovens para o ministério ou para o serviço do governo” (MOORE, 1984, p. 158). Em sua análise, Moore afirma que

(...) o âmbito desse programa de educação, juntamente com sua diversidade e durabilidade, demonstram o aspecto prático e a força da filosofia educacional de Calvino. Através dessas instituições, a Igreja, por meio de sua liderança eleita, poderia prover a instrução do povo de Cristo. O processo envolvia tanto o lar como o governo civil, mas concentrava-se principalmente na liderança e na supervisão dos pastores e dos mestres  (1984, p.148)

Embora não se possa afirmar que Calvino desenvolveu uma teoria do aprendizado propriamente dita, em seu estudo, Moore extrai e relaciona alguns princípios epistemológicos do pensamento de Calvino.

Calvino entende que o homem é um ser por natureza movido a aprender. O Deus criador depositou na mente humana a semente da religião e Ele mesmo manifesta-se ao homem no Universo criado, na Sua palavra revelada, a Bíblia, e na pessoa de Cristo, a imagem de Deus e a expressão exata do seu ser (Bíblia Sagrada, 1993, Colossenses 1:15).

Este conhecimento de Deus, conquanto não seja negado pelos homens, é obtido através do labor intelectual e da obra de iluminação do Espírito Santo nos corações e nas mentes daqueles que desejam conhecer a Deus (MOORE, 1984, p. 149).

A aprendizagem consiste de conteúdo e aplicação. O conteúdo focaliza: o conhecimento do Deus Criador, que se volta para as obras de Deus na natureza e no universo e remete ao estudo das ciências; o conhecimento do Deus Redentor pela fé em Cristo e que leva o homem a “buscar a Deus, cultuá-lo, confiar nEle, temê-lo, ser grato e glorificá-lo” (Institutas, 1.2.1, 1.5.10, 1.2.1); e o conhecimento de si próprio, do fim para o qual foi criado, e das qualidades com as quais foi dotado, conteúdos que orientam o homem para Deus, na medida em que, considerando suas faculdades (ou falta delas), o homem é levado à humilhação, à confiança no Redentor e à gratidão a Deus.

A aplicação implica na transformação e renovação da mente, coração e vontade do aprendiz. Segundo Moore, “era esse tipo de aprendizado, que envolvia o homem por completo, que Calvino desejava efetivar nos seus alunos e no seu rebanho.” (1984, p. 151).

Dentre os objetivos do aprendizado, a julgar pelo tríplice alvo do estudo do catecismo (uma apresentação oral; a exposição de um resumo do conteúdo aprendido e a profissão de fé da criança perante a congregação), estavam inclusos um objetivo psicomotor, um cognitivo e um afetivo, para usar de terminologia contemporânea (MOORE, 1984, p. 155).

Os alunos e professores deveriam ter clara noção de seus deveres e responsabilidades. Da parte dos alunos, era-lhes exigida a participação ativa e fiel no culto público, onde poderiam ser instruídos, a diligência no estudo pessoal, principalmente das Escrituras, e a vigilância sobre sua própria vida, ou seja, o esforço para praticarem o que estavam aprendendo (MOORE, 1984, p. 154). Da parte dos professores, Calvino enfatizava a necessidade da diligência, do preparo adequado e da fidelidade à Palavra de Deus.

Quanto ao método de instrução, Calvino defendia o uso de métodos variados, apropriados a audiências, contextos e propósitos diferenciados, a saber, a palestra para os sermões públicos e instrução de adultos; a catequese para as crianças na igreja, a leitura individual e pública e o ensino com tutor particular (MOORE, 1984, p. 154).

H. D. FORSTER sumariza desse modo as características da educação calvinista:

Acentuação do elemento leigo na educação; preparação para a “república” e para a “sociedade”, tanto quanto para a Igreja; insistência na virtude e no conhecimento; exigência de larga educação como essencial para a liberdade de consciência; amplo sistema de educação elementar, secundária e universitária, tanto para os pobres como para os ricos; enorme conhecimento das Escrituras, ainda entre as classes mais pobres; utilização da organização representativa da Igreja para fundar, sustentar e unificar a educação; disposição de sacrificar-se pela educação, realizando-a a todo custo; inspeção, de forma coletiva, de professores e estudantes; grande acentuação do emprego da língua vernácula e, finalmente, espírito progressivo de indagação e investigação (FORSTER apud. LUZURIAGA, 1987, p. 113).

Da Reforma Calvinista, dois outros nomes podem ser mencionados que representam a educação calvinista, os reformadores Zwínglio, na Suíça e John Knox, na Escócia.

Zwínglio (1484-1532), reformador suíço considerado precursor de Calvino e “porta-voz convicto da primazia da autoridade das Escrituras” (GILES, 1987, p. 125), animou a formação de escolas elementares e foi autor do primeiro tratado educacional do ponto de vista protestante: “A Maneira de Instruir e Educar Meninos Cristãmente”.

De maneira direta, Zwínglio interferiu na reforma educacional suíça reestruturando duas escolas associadas à Igreja Great Minister, e conduzindo as atividades de uma reunião diária de peritos na Bíblia que expunham as Escrituras e contribuíram para uma tradução suíça-alemã da Bíblia (FABER, 1999a, p.1).

O pensamento educacional deste reformador pode ser encontrado a partir dos princípios norteadores dessa obra, cujo título pode ser também traduzido: “Sobre a Criação e Educação do Jovem na Disciplina Cristã e nas Boas Maneiras”(1523)

Faber (1999a, p. 1) relaciona em um artigo observações que Zwínglio fez acerca da base da instrução reformada, da formação de um caráter moralmente correto e do serviço a outros como resultado de uma criação apropriada. Este tratado é dividido em três seções: 1) “como a mente imatura do jovem deve ser instruída nas coisas de Deus”, ou seja, princípios reformados que estão por trás da criação e educação; 2) “como o jovem deve ser instruído no que concerne a si mesmo”, ou seja, a maneira como um jovem progride como cristão; e 3) “como o jovem deve ser instruído na sua conduta em relação a outras pessoas”, ou o comportamento cristão no contexto social” (FABER, 1999a, p. 2). Zwínglio parte da premissa de que “embora a educação seja muito importante, ela não pode conduzir à fé salvífica” (FABER, 1999a, p. 2). O conhecimento de Deus e a fé salvadora em Cristo é uma concessão da graça divina operada nas mentes e corações e portanto, “todo aprendizado está sujeito à graça de Deus” (FABER, 1999a, p. 2).

Conquanto a sabedoria humana não produz fé e confiança em Cristo, e desde que o Espírito emprega a Bíblia para a operar a fé, “deveríamos aprender o Evangelho com toda exatidão e diligência” (ZWÍNGLIO, 1953, p. 108). Daí seu argumento de que a Escritura deveria ser o ponto inicial para uma discussão sobre educação.

Outra premissa encontrada em seu tratado é a de que “o conhecimento depende da providência de Deus” (FABER, 1999a, p. 3). Assim, Zwínglio declara que o objeto do aprendizado é o universo e tudo o que ele contém e o estudo dessa ordem das coisas criadas revela que existe alguém superior a eles, Deus, cujo poder as criou e cuja providência as ordena e mantém.

Quanto ao aprendizado humano, Zwínglio parte da idéia de que é preciso reconhecer que o homem em sua habilidade de aprender foi afetado pela queda e pecado original e atuais, segundo a doutrina da depravação do homem, o que deveria humilhar os homens e leva-los à confiança na graça de Deus. Da doutrina da Redenção, toma o princípio de que “o sacrifício redentor do Senhor Jesus Cristo dá à educação um novo significado e propósito” (FABER, 1999, p. 4), pois Cristo se tornou “ nossa sabedoria, nossa justiça, santificação e redenção” (Bíblia Sagrada, I Co 1:30). O crente redimido, ainda que pecador, “busca viver para Deus e conhecê-lo através do estudo de sua Palavra e do mundo que Ele criou” (p. 4), sendo capacitado pelo Espírito Santo “a empregar a educação com o propósito apropriado de servir a Deus e seus semelhantes.”

No que se refere à instrução do jovem sobre si mesmo, Zwínglio assinala a necessidade da base bíblica para todo desenvolvimento moral e intelectual e de “um espírito humilde e sequioso” (ZWÍNGLIO, 1953, p. 109) para receber a instrução da Escritura, posto que o temor do Senhor é o princípio do saber e que a centralidade do conhecimento de Cristo é fundamental, primeiro como o salvador do mundo, mas também como o exemplo excelente de uma conduta reta, a quem o jovem deve buscar seguir.

Na última seção, que diz respeito à conduta do jovem em relação às outras pessoas, “Zwínglio deseja convencer seus leitores que servir aos outros é a conseqüência mais importante de uma instrução adequada” (FABER, 1999a, p. 5). E porque “Cristo se entregou à morte em nosso favor e se tornou nosso, devemos nos entregar em favor de todos os homens, não considerando que somos de nós mesmos, mas que pertencemos aos outros” (ZWÍNGLIO, 1999, p. 113). Assim, a educação formal e a criação dos pais deveria preparar o jovem para “servir a comunidade cristã, o bem comum, o Estado e os indivíduos” (p. 113).

Para alcançar o objetivo maior de auxiliar na formação de um caráter cristão, a educação reformada deve focalizar três aspectos da conduta pública: o comportamento do crente, cujas ações devem ser movidas pelo empenho no serviço aos outros com fidelidade, justiça, honestidade e constância (FABER, 1999a, p. 5); a linguagem, que revela o coração e portanto deve ser vigiada para que não contenha dolo ou falsidade e para que seja sábia e proveitosa; e o pensamento, que controla a ação e a linguagem e é revelado por elas, deve ser cuidadosamente avaliado pelo jovem, e deve ser dirigido de acordo com as normas da Escritura.

Ao sumarizar seu artigo sobre o Ensino de Zwínglio sobre a Instrução Reformada, Faber (1999a, p. 118) enfatiza, além da única base adequada, as Escrituras Sagradas, que

De acordo com Zuínglio, o objeto último do ensino é “Cristo e este crucificado”. E como a mensagem do Evangelho é encontrada somente na Bíblia, a Bíblia providenciaria o foco de toda instrução. O aluno que busca a verdadeira sabedoria deve buscar o Senhor Jesus Cristo e seu ensino. Para Zuínglio então, “educação” é algo mais amplo do que o estudo acadêmico ou escolar. Além do avanço intelectual, a instrução reformada diz respeito a inculcação das virtudes bíblicas de justiça, santidade e autocontrole. Não somente a vida diante de Deus, mas também a conduta na presença de outros deveria ser marcada por estas virtudes. Dedicando sua vida inteira à glória de Deus e ao serviço de outros, o aluno reformado busca aplicar a Palavra de Deus à sua vida. Claro, Zuínglio conclui, isto só pode ser feito pela graça de Deus. Por esta razão ele termina o tratado com esta oração: “que Deus possa conduzir-te através das coisas deste mundo de tal maneira, que você nunca se separe dele”.

O grande reformador da Escócia, John Knox (1515-1572), além de sacerdote e tutor de filhos de famílias nobres, destacou-se como notável pregador. Com grande influência de Calvino, Knox foi o grande realizador dos ideais educacionais de Calvino, e deu enorme impulso à educação popular, “fazendo daquele Estado o mais importante de língua inglesa” (LUZURIAGA, 1987, p. 112) através da implantação do sistema de Escola paroquial na Escócia (MONROE, 1988, p.178).

O primeiro Livro de Disciplina para a Igreja escocesa (1560) redigido por Knox apresenta propostas para um amplo sistema de escolas controladas pela Igreja Reformada. Temos que: “Toda igreja deve ter um mestre-escola que seja capaz de ensinar gramática e a língua latina; e no campo o ministro deve cuidar das crianças para instruí-las nos primeiros rudimentos e especialmente no catecismo” (LUZURIAGA, 1987, p. 112).

Seguindo a proposta de Calvino, a responsabilidade pela educação religiosa dos jovens de cada paróquia era do pastor e demais oficiais desta. Além disso, o plano educativo de Knox exigia o “ensino universal e compulsório dentro de um sistema nacional unificado” (MONROE, 1988, p.178). Giles (1987, p. 127) comenta que por ser dispendioso, “o plano não foi universalmente aceito. Todavia, onde foi aceito, representou um avanço real na História da Educação”.

A reforma escocesa atingiu indiretamente os EUA, porque muitos presbiterianos escoceses emigraram primeiro para a Irlanda do Norte, no século XVII, e de lá milhares foram para os EUA, na primeira metade do século XVIII. Assim, o presbiterianismo norte-americano descende, diretamente, do presbiterianismo escocês.

 


2.3 Contribuições da Reforma para a Educação de Seu Tempo


 

Desde antes da Reforma, já se falava sobre a necessidade de mudanças na educação dentro de moldes cristãos. Assim, o desenvolvimento da educação reformada não começou nem terminou com a obra dos primeiros reformadores. Antes de Lutero, cristãos humanistas publicaram tratados promovendo a melhoria educacional e o próprio Renascimento tinha como característica distintiva a revalorização do aprendizado em bases cristãs. Os reformadores, tendo sido educados no humanismo, estavam acostumados a discutir os problemas educacionais e os princípios e métodos de aprendizagem, com o que foram forçados a considerar o papel da educação para a vida do crente.

De toda forma, a Reforma consistiu num marco de avanço do processo educacional na Europa no início da era moderna, cujos resultados estenderam-se para muito além deste tempo e espaço localizados. Há que se considerar, entretanto, juntamente com os avanços, as limitações da obra educacional dos reformadores dentro do seu contexto histórico, para que possam ser adequadamente compreendidas e avaliadas.

O Historiador da Educação Lorenzo Luzuriaga relaciona os avanços da educação da Reforma dentro de seu contexto:

(...) que esta supunha a leitura da Bíblia, e, portanto, a necessidade de ensinar todos a ler; daí seu interesse pelo ensino popular. (...) A Reforma, igualmente, organiza a educação pública não apenas no grau médio, ampliando a ação dos colégios humanistas da renascença, mas também, e pela primeira vez, com a escola primária pública. Finalmente, tem a Reforma caracteres próprios em cada país, acentuando o caráter nacional da educação, e daí surgem diversos sistemas nacionais, ante a universidade e homogeneidade da educação medieval. (1987, p. 108-9).

Na Alemanha, o resultado do esforço de Lutero, realizado na prática por Melânchthon e outros colaboradores, foi a promoção da educação pública, com maior desenvolvimento do Ensino Médio, a partir da criação de numerosos colégios secundários, em substituição às escolas catedrais.

Quanto à natureza do ensino oferecido nas escolas reformadas, destaca-se “o ensino na língua vernácula e, portanto, ensino de cunho nacional” (LUZURIAGA, 1987, p 111) e a valorização dos clássicos gregos e do conteúdo humanista (leitura, escrita, cálculo), sendo todos eles submetidos ao escrutínio das Escrituras Sagradas, que passaram a ser lidas, estudadas, explicadas, memorizadas, cantadas e eram apresentadas como a regra de fé e de toda conduta também no âmbito educacional.

O caráter abrangente, para meninos e meninas, ricos e pobres, e a freqüência obrigatória decretada pelo Estado constituem avanços notáveis da pedagogia Luterana. Luzuriaga destaca os avanços de uma organização tríplice da educação pública na Alemanha, cujo molde delineia os sistemas educacionais de nosso tempo:

Ao terminar o século XVI, a educação pública na Alemanha, isto é, nos múltiplos Estados que a compunham, constituía-se, pelo menos nominalmente, desta forma: a) escolas primárias para o povo, nas aldeias e pequenas localidades, com ensino muito elementar dado na língua alemã, por eclesiásticos ou sacristãos, e com caráter principalmente religioso; b) escolas secundárias ou latinas, para a burguesia, de caráter humanista, mas também religioso, como preparação principalmente para os cargos eclesiásticos e profissões liberais; c) escolas superiores e universidades já existentes em toda parte, mas transformadas no espírito da religião reformada, e outras, de nova criação dos príncipes protestantes. Essa organização tríplice manteve-se pela história da educação até nosso tempo, mas com espírito e métodos naturalmente diferentes.  (LUZURIAGA, 1987, p 111).

Foi especialmente marcante o progresso das Universidades a partir da Reforma Alemã: Wittenberg, Marburgo, Konigsberg, Jena, Helmstadt, Dorpat, Strasburgo e Altdorf estão entre as que foram criadas ou experimentaram marcante desenvolvimento no tempo da Reforma. Embora as atividades em algumas destas universidades tenham degenerado, no século XVII, num formalismo sem vida (MONROE, 1988, p. 181), é sabido que o sistema alemão foi um dos mais duradouros e que atravessou os séculos posteriores de decadência do ensino universitário com maior sucesso.

A educação religiosa calvinista, por sua vez, levou ao desenvolvimento de um sistema de educação elementar no idioma vernáculo para todos, à criação das escolas secundárias, que formavam funcionários civis e eclesiásticos, e ao êxito imediato da Academia, fundada por Calvino e orientada por Teodoro de Beza, “atraindo alunos da França, Inglaterra, Holanda e Escócia, países em que serve de modelo”. (MONROE, 1988, p. 181)

As idéias calvinistas se estenderam aos huguenotes na França, aos Valões na Holanda e Bélgica, aos Puritanos na Inglaterra, aos Presbiterianos na Escócia, chegando até às colônias inglesas na América. Giles detalha as contribuições calvinistas em outros países:

(...) na França, os huguenotes fundam oito universidades e trinta e dois colégios, além de inúmeras escoas elementares. Na época elisabetana, a versão puritana do calvinismo domina Oxford e Cambridge. As universidades de Leiden, Amsterdã, Utrecht e Groningen também seguem os ensinamentos de Calvino. Abrem-se escolas elementares em Haia, Utrecht e Drente, sob patrocínio público, para crianças de todas as classes sociais. (1987, p. 126)

Na Inglaterra, a Reforma se deu por motivos religiosos e políticos e de início, o povo em geral permaneceu indiferente a esse movimento. Com o tempo, entretanto, a nova Igreja ganhou grande força e as medidas educacionais realizadas pelos reis ingleses foram também bastante significativas.

A princípio, os mosteiros católicos foram fechados e as casas religiosas foram transformadas em Igrejas colegiadas com uma escola anexa. Em lugar das escolas catedrais, claustrais e monásticas, foram implantadas as escolas reformadas. Na reforma inglesa,

Aceita-se o princípio conforme o qual a educação é preocupação da Igreja e não das autoridades, mas a Igreja submete-se à Coroa. A Inglaterra dedica-se à fundação de escolas de caridade, de alfabetização, de aprendizagem profissional, e de instituições particulares sob a direção de senhoras. Estas substituem as antigas escolas mantidas pela igreja católica. (MONROE, 1988, p. 181).

Os Colégios de fundações ou Escolas Públicas (Public Schools) eram para os filhos da burguesia e dos cavaleiros pobres. Os ricos eram educados por preceptores e as classes mais baixas foram especialmente beneficiadas com a promulgação da “lei para os pobres” de 1601, que ordenava “a arrecadação de impostos compulsórios sobre a propriedade, com a finalidade de custear curso de aprendizagem nas casas de trabalho para os pobres. Outra exigência da mesma lei era que os seus filhos recebessem instrução religiosa, tornada obrigatória em cada paróquia” (GILES, 1987, p. 127-8). Com esta lei, as autoridades passavam a cuidar da educação das classes desfavorecidas.

Também na Inglaterra a Reforma esteve associada ao impulso e desenvolvimento de universidades. Segundo Monroe, “Em Cambridge, onde se centralizou a Reforma, o movimento começou no início do período, sob a liderança de Tyndale (1484-1536) e Latimer (1485-1555)” (MONROE, 1988, p. 181) e os mosteiros católicos de Oxford e Cambridge foram transformados em importantes universidades orientadas pelo protestantismo.

Não se deve ignorar o fato de que, de início, a Reforma pareceu significar um ataque à educação existente, e de fato, a educação medieval caiu em declínio, a julgar pela diminuição do número de alunos nas universidades de então, e pelo fechamento das escolas locais menores (NOLL, 1980, p. 103-104). Embora este declínio fosse já uma tendência do materialismo do período, é certo que alguns argumentos dos reformadores contra a educação medieval abalaram ainda mais a confiança social e o próprio suporte financeiro das instituições existentes. Esses argumentos são esboçados por Mark A. Noll em sua obra sobre os Primeiros Protestantes e a Reforma da Educação:

(...) da parte dos reformadores, a questão contra a educação medieval tinha a seguinte conotação: “A Igreja Católica Romana perverteu o cristianismo e escureceu a luz do Evangelho. É esta Igreja católica romana que comanda e patrocina a educação. A educação, portanto, deve estar tão corrompida como sua patrocinadora. (1980, p. 102).

O segundo argumento anti-educacional da época não tinha teor religioso e era mais ou menos o seguinte: “nunca houve tantas chances para alguém se dar bem na vida. Ouro, prata e outras matérias primas provindas das Américas estão enriquecendo a Europa. O comércio está em expansão. O que, nestas circunstâncias, a educação pode significar para meus filhos? O que desejo é ser rico ou ao menos me dar muito bem na vida, e para isso eu não preciso freqüentar escolas” (NOLL, 1980, p. 102).

A propagação destas idéias e o conseqüente declínio da educação católica no início da Reforma explica o comentário de alguns historiadores da educação, como Manacorda (1989), que relata que: “a supressão das estruturas eclesiásticas nem sempre levou à imediata instituição de escolas comunais reformadas” e cita Erasmo: “Onde floresce o Luteranismo, as escolas definham” (ERASMO apud. MANACORDA, 1989, p. 195).

Entretanto, esta decadência da educação católica medieval também explica a urgência entre os reformadores no tratamento da questão da instrução dos jovens e no suporte da educação através da implantação das escolas reformadas nos diversos países em que a reforma floresceu.

Do ponto de vista da educação das mulheres, dos pobres, dos trabalhadores, que não visavam o pastorado ou o governo civil, as medidas educacionais tomadas pelos reformadores significaram avanços e limitações. As limitações refletem a visão do século XVI, mas os avanços ocorreram porque:

(...) embora a reforma fosse um produto do seu tempo, ela também estava cativa ao Evangelho. E porque manteve-se cativa ao Evangelho ela permitiu a introdução de novas ênfases. Algumas dessas novas ênfases iniciaram reformas que modernamente têm sido reconhecidas. Foi a doutrina reformada do sacerdócio de todos os crentes que dirigiram a educação para uma via democrática e liberalizante (...) Os reformadores também sustentaram uma visão elevada das esferas da vida criadas por Deus, de modo que nenhuma ocupação era desonrosa (...).

Essas ênfases do ensino reformado tiveram dois efeitos principais. Primeiro, a educação de elite voltada aos ministros e governantes foi estendida àqueles que nunca chegariam a ser ministros ou magistrados. Em segundo lugar e mais radical, a educação passou a ser oferecida àqueles que nunca viriam a pregar ou a governar (NOLL, 1980, p. 121-2).

Lutero defendia a necessidade da educação para que todos pudessem ser bons cidadãos, para o governo apropriado dos negócios e do lar (no caso das mulheres) e pelo simples prazer de estudar, de ler as mais diversas fontes, de discutir idéias e, especialmente, para que todos tivessem acesso direto às Sagradas Escrituras.

Com respeito às mulheres, podem não parecer tão significativas as reformas educacionais realizadas, sob os padrões modernos, mas considerando a situação das mulheres na época, elas representaram um grande avanço, os quais podem ser vistos de três formas: o reconhecimento de que as mulheres cristãs, possuindo todos os direitos e deveres de uma sacerdote (segundo a doutrina do sacerdócio de todos os crentes) e filha de Deus, deviam aprender a ler e estudar para serem mais úteis ao Reino de Deus; o estabelecimento de escolas para meninas nas cidades e a importância do papel conferido às mulheres como responsáveis e verdadeiras gerentes do lar, dos filhos e dos negócios da família.

A relação entre a profundidade das medidas tomadas pelos reformadores e o seu contexto, pode ser visualizada também no que tange aos propósitos da educação e ao seu currículo.

Muitas das características da Reforma educacional foram influenciadas pela Renascença, especialmente quanto aos métodos e objetivos da educação. “Melânchthon chegou a usar dois “slogans” próprios da renascença cristã como as chaves para sua reforma educacional: “o retorno às fontes” (aos escritos originais gregos e latinos) e “o conhecimento de Cristo”. Embora reconhecesse as diferenças existentes entre os reformadores e os eruditos ligados à Igreja Católica como Erasmo, Lefreve, John Colet e Thomas More, ele não desprezava sua contribuição intelectual.

Quanto ao objetivo da educação, embora pudesse ser resumido na fé em Deus e no temor do Senhor, pela introdução maciça e dominante das Escrituras no currículo, a busca desse objetivo principal levou ao alargamento dos objetivos educacionais e do currículo. Segundo Noll:

Enquanto a reforma manteve as sete artes liberais ensinadas na Idade Média, ela se voltou para novos campos que seu próprio ensino tornou importante. Os reformadores também expressaram renovada preocupação pelo desenvolvimento da piedade e do bom caráter geral, objetivos educacionais raramente colocados com clareza na educação medieval. (1980, p. 124).

A progressão das fases dentro de um sistema educacional, a ênfase no estudo das línguas, especialmente o Latim, o grego e o hebraico, além dos idiomas vernáculos, a introdução da música no currículo, um novo olhar para o mundo como criado por Deus, o clamor por uma mudança no fazer a ciência e a preocupação com aspectos mais práticos da vida como a necessidade de unir o estudo ao trabalho e lazer dos jovens e a um método de ensino baseado na curiosidade natural das crianças e no prazer de estudar; todos esses fatos e características da educação reformada podem ser considerados, mesmo dentro do contexto do século XVI, avanços concretos para a História da Educação e para a Construção de uma filosofia educacional reformada.

Por fim, cabe considerar ainda um aspecto político que envolve os reformadores concernente ao papel do Estado na condução da Educação. Como coloca o estudioso da Reforma Harold I. Grimm: “Lutero foi o primeiro educador dos tempos modernos a tornar o Estado ciente de suas grandes obrigações para com a sociedade e de suas abrangentes oportunidades no campo da educação” (GRIMM apud NOLL, 1980, p. 128-9).

Essa questão é colocada por NOLL de um ponto de vista que evidencia o caráter contraditório e, de certa forma, irônico, do desenvolvimento da relação Igreja-Estado-Educação:

A parte irônica desse desenvolvimento é que Lutero e os outros Reformadores chamaram o Estado para exercer as funções religiosas que a Igreja Católica estava pervertendo. Mas a subseqüente educação estatal, particularmente na América, tornou-se cada vez mais precavida – ou mesmo hostil – à qualquer tipo de expressão religiosa formal (...).

Essa situação estranha pode ser explicada historicamente. Os primeiros reformadores não tinham a noção que temos atualmente da separação entre a Igreja e o Estado. Eles pensavam que um governador piedoso deveria, e poderia, fazer muito para a promoção da Igreja e de outros interesses cristãos (...). Eles não visionavam o pluralismo moderno, onde uma grande variedade de crenças coexistem numa mesma sociedade. (1980,  p. 129).

Com razão, o período da Reforma tem sido referenciado pelos historiadores ocidentais como a era na qual a educação pública e universal iniciou. Mas essa posição sustentada pelos reformadores estava ligada à necessidade de todos terem acesso ao conhecimento da Palavra de Deus e dependia do compromisso do Estado com esse propósito que a educação medieval não alcançara. Os reformadores não previam, contudo, que, mais tarde, os propósitos da educação pública deixariam de ser religiosos e dariam lugar a propósitos seculares.

 

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